Que futuro para as políticas de drogas em torno da canábis? Entrevistas a observadores privilegiados em Portugal e no Uruguai

Dimensão analítica: Saúde e Condições e Estilos de Vida

Título do artigo: Que futuro para as políticas de drogas em torno da canábis? Entrevistas a observadores privilegiados em Portugal e no Uruguai [1]

Autora: Joana Canêdo

Filiação institucional: Doutoranda ICS-IUL; bolseira FCT; EuroNPUD; Manas.

E-mail: joanaf.canedo@gmail.com

Palavras-chave: canábis, legalização, descriminalização, redução de riscos e minimização de danos, direitos.

Em pleno século XXI, o uso de canábis continua a ser um tema alvo de controvérsias quer a nível moral, quer no domínio das políticas públicas, ainda longe de gerar consenso entre governos, organizações internacionais e especialistas de diferentes áreas. Por outro lado, o aumento e a massificação do uso de substâncias psicoativas [2], comumente designadas por “drogas”, e o desgaste da abordagem repressiva – sobretudo centrada na oferta, mas também na procura, levam a que atualmente se discuta a revisão das convenções internacionais por se considerarem desajustadas à realidade [3;4].

A canábis, mais particularmente, começou por ser associada, nos anos sessenta, com patologias individuais (como a psicose canábica e síndrome amotivacional) e a questão racial ou sectária ficaria patente também na história desta planta, pois à época esta era uma “droga” de hispânicos ou ainda símbolo da subcultura hippie [5]. Serviu ainda a motivação de Nixon, então presidente dos EUA, para iniciar uma “guerra às drogas” que diabolizou esta e outras substâncias, como o LSD ou o ecstasy. O facto, porém, é que o consumo de canábis aumentou nas décadas subsequentes e que sociólogos (as/es) definem hoje como “normalizado” [6;7], dado que o seu uso se tem vindo a afirmar como um comportamento habitual e cultural, entre a população em geral e, em particular, entre as gerações mais jovens, perdendo o seu status de excecional e irrompendo no domínio do familiar e quotidiano, pese embora o controlo desta substância por políticas nacionais e pelo sistema de controlo internacional das Nações Unidas.

Países como o Uruguai, o Canadá, alguns estados dos EUA e, muito provavelmente, em breve, a Alemanha [8], já legalizaram o uso medicinal e recreativo, apesar da permanência da substância na Lista das substâncias proibidas. A estes, vão-se somando outros países que atuam dentro do enquadramento da descriminalização e/ou Redução de Riscos e Minimização de Danos (RRMD), como Portugal, a República Checa, a Suíça ou o Reino Unido.

Entre o leque de escolhas legislativas possíveis para as drogas, pelo seu carácter inovador, são foco da minha análise a lei da descriminalização portuguesa (Lei 30/2000, de 29 de novembro) e a regulação uruguaia do mercado da canábis (Lei 19.172, de 2013), que legalizou a compra de até 40 gramas por mês em farmácias para adultos, bem como o autocultivo ou pertença a um club (associação) de cultivo canábico. Com objetivos comparativos, que permitissem contextualizar as políticas e perceber alguns dos seus alcances e limitações, entrevistei, entre 2014 e 2015, um conjunto de especialistas nos dois países, sob uma perspetiva multidisciplinar e dialógica.

Reconhecendo que o tema é complexo e controverso e que as diferentes opções envolvem riscos e benefícios, as opiniões dos entrevistados variam também entre os países e áreas de atuação. Não obstante, quer em Portugal, quer no Uruguai, quando questionados sobre o “modelo” de políticas de droga em Portugal, a opinião dos informantes é globalmente positiva e várias vantagens são apontadas, mas até os observadores portugueses concordam que é preciso fazer mais: descriminalizar não chega. Já no Uruguai, onde à despenalização se seguiu a legalização, para a canábis, é possível aferir que a regulação se principia, antes de tudo, como uma medida de RRMD sendo mencionada um enquadramento útil e não moralista que serviu favoravelmente à implantação de um mercado regulado para a canábis afigurando-se, deste modo, como um eixo orientador da política no Uruguai, mas também um dos pilares da política portuguesa, onde todavia a legalização ainda não singrou.

Sublinhe-se que as avaliações da legislação uruguaia, nomeadamente em torno de questões de segurança no consumo, saúde pública e justiça social, concluem sobre a redução das taxas de criminalidade, a aferição do número de consumidores e o monitoramento do controlo de qualidade da canábis, sendo que o seu uso entre jovens parece não ter aumentado significativamente. Nesta linha de pensamento, entre os diferentes especialistas entrevistados, apontam-se como benefícios da legalização da canábis a diminuição do mercado ilegal, a regulamentação da qualidade e a segurança dos produtos, a “arrecadação” de impostos e o investimento dos recursos na educação e na prevenção do abuso de substâncias. Além disso, o advogado Martin Hernandez relembra que a legalização pode ajudar a reduzir a superlotação das prisões e a minimizar o preconceito e a discriminação racial e social relacionados à criminalização do uso de drogas.

Tendo sido refletida maioritariamente pelos informantes como um “meio caminho”, a descriminalização do consumo em Portugal é considerada um exemplo de como o Estado parece ter interesse em formatar as escolhas dos indivíduos em relação às drogas, mais do que apresentar um racional e evidências científicas sobre as mesmas, afastando soluções experimentais e continuando a aposta falhada na dissuasão do consumo que, por exemplo, no caso da canábis apresenta um ligeiro aumento de acordo com os relatórios dos últimos anos do SICAD [10].

Chegou o tempo de pensar cientificamente, aprender com outros marcos regulatórios, envolver as pessoas afetadas e trabalhar no sentido de gerar concertação social em torno de políticas mais justas e humanas. É inegável que o “modelo português” tem vindo a ser elogiado, mas está na hora de reavaliar a política de droga portuguesa por forma a continuar práticas que, de facto, definem um sistema legal como progressista. De acordo com as boas práticas que apontam os uruguaios, é possível pensar noutros ordenamentos jurídicos para a canábis, em que o Estado detém o monopólio da produção e distribuição, assegurando que as pessoas ainda assim podem cultivar nas suas casas ou em clubes canábicos, autênticos veículos de promoção de uma economia de partilha, mencionada nestas páginas também como uma prática de Economia Solidária, a par de verdadeiramente humanista, pois é focada no indivíduo, sociedade, na sua segurança e saúde – pelo controlo de qualidade e potência, e também na esfera dos direitos humanos.

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Notas:

[1] Este texto tem por base a dissertação de mestrado da autora em Economia e Políticas Públicas no ISCTE-IUL, terminada em 2019 sob o tema “Duas opções políticas para a cannabis: descriminalização e regulação [Portugal, Uruguai]. Disponível em: https://repositorio.iscte.pt/bitstream/10071/26700/1/ master_joana_barroso_dias.pdf

[2] United Nations Office on Drugs and Crime (2022). World Drug Report 2022. Disponível em: https://www.unodc.org/unodc/data-andanalysis/world-drug- report-2022.html

[3] Bennett, W. & Walsh, J. (2014). Marijuana. Legalization is an opportunity to Modernize International Drug Treaties. Washington, Center for Effective Public Management

[4] Global Commission on Drug Policy (2018). Regulation – The responsible control on drugs. Disponível em: http://www.globalcommissionondrugs.org/ reports/regulation-the-responsiblecontrol-of-drugs

[5] Escohotado, A. (2004). História Elementar das Drogas. Lisboa, Antígona.

[6] Coomber, R., McElrath, K., Measham, F., & Moore, K. (2013). Decriminalisation, Legalisation and Legal Regulation. In F. Measham, K. McElrath, K. Moore & R. Coomber, Key Concepts in Drugs and Society, Londres, SAGE Publications book

[7] Fountain, J. & Korf, D. (2007). Introduction: the social meaning of drugs. In J. Fountain, & D. Korf (orgs.), Drugs in society: European perspectives (pp. i-xii), Reino Unido, Radcliffe Publishing.

[8] Ministro da Saúde alemão revela que Comissão Europeia dá parecer favorável à regulação da canábis. Disponível em: https://internationalcbc.com/ germanys-health-minister-indicates-that-the-eu-will-allow-legalization-to-proceed/

[9] Collazo, M. & Robaina, G. (2015), Avaliação e Monitoramento da Regulamentação do Mercado de Canábis no Uruguai; uma proposta conceitual e metodológica. Montevideu, Friedrich Ebert Stiftung e Fundações Open Society

[10] Disponível em: https://www.sicad.pt/PT/Publicacoes/Paginas/default.aspx

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