Uma agenda por detrás da pseudociência

Dimensão analítica: Educação e Ciência

Título do artigo: Uma agenda por detrás da pseudociência

Autor: Pedro Abreu

Filiação institucional: NOVA School of Science and Technology | FCT NOVA

E-mail: pjma@fct.unl.pt

Palavras-chave: ciência, pseudociência, cultura científica.

Entrevista conduzida por João Aguiar, Instituto de Sociologia da Universidade do Porto

1 – A pseudociência tem-se disseminado de um modo vincado. Paradoxalmente, tal facto ocorre num período histórico em que nunca houve tanto impacto do desenvolvimento científico e tecnológico. A que pensa que se deve este desfasamento?

O termo desfasamento pode ser interpretado como o não-acompanhamento e incompreensão do desenvolvimento e progresso científico pela população recetora da disseminação da pseudociência. Na era da conectividade global, a propagação e absorção da pseudociência, uma das manifestações da desinformação científica, pode ser vista como uma doença infeciosa veiculada por “predadores” e depois transmitida pelas “vítimas” através de contactos sociais, leia-se, pelas redes sociais [A. Kucharski, “Study epidemiology of fake news”, Nature, 540, 525 (2016)]. Existe uma agenda política e ideológica por detrás da pseudociência, que a par dos interesses económicos encontra na iliteracia científica da população recetora um alvo privilegiado. Um estudo do Center for Countering Digital Hate (CCDH; www.counterhate.com) concluiu que 12 pessoas são responsáveis por 73% da desinformação anti-vacinas no Facebook, quase todas ligadas ao negócio de milhões das medicinas alternativas. O desfasamento é acentuado no que diz respeito à velocidade de divulgação da informação científica pelos meios de comunicação tradicionais (publicações científicas e meios de comunicação) versus desinformação por parte das redes sociais, sendo que a mensagem simplista da pseudociência é mais facilmente percetível pela população alvo do que a elaborada mensagem da ciência.

2 – A ciência, mais propriamente nas Ciências Naturais, corresponde fundamentalmente a um conjunto de teorias e de conhecimentos continuamente testados metodologicamente por via da experimentação, da replicação e da discussão dos resultados. Nesse sentido, gostaria que comentasse, com casos práticos e concretos, a capacidade de superação contínua do método científico. De que forma tal procedimento confere uma capacidade constante de correção e de aprimoramento do conhecimento científico?

O desenvolvimento das vacinas contra a Covid-19 da Pfizer e Moderna, assentes na tecnologia RNA-mensageiro, é um projeto que ilustra como um conceito delineado inicialmente há 30 anos atrás (Katalin Karikó, Universidade da Pensilvânia) e que tinha como objetivo o aproveitamento do potencial de mRNA sintético no tratamento de diversas patologias, nomeadamente do foro oncológico, pôde ser melhorado experimentalmente para evitar a sua destruição pelas defesas naturais do organismo antes de atingir as células-alvo, permitindo assim que o mRNA modificado aí produzisse proteínas com inúmeras aplicações. Os trabalhos publicados a partir de 2005 sobre esta investigação estão na base do método desenvolvido pela Pfizer e Moderna para o desenho das vacinas logo que cientistas chineses isolaram o SARS-CoV-2 e publicaram a sua sequência genética. Toda esta investigação foi multidisciplinar, envolvendo entre outras, as áreas da biologia molecular, química, biotecnologia, medicina, imunologia, e informática. É pela via da experimentação, replicação e discussão de resultados que na literatura científica sobre um determinado tema nos apercebemos da diferença entre o verbo sugerir e concluir. No início da investigação “os resultados sugerem”, no final “os resultados permitem concluir”.

3 – Tem-se batido publicamente e em diversos artigos de opinião, nomeadamente no jornal Público, contra a desinformação veiculada pelo negacionismo. Tendo em mente as discrepantes taxas de vacinação entre, por exemplo, Portugal e a Alemanha ou a Áustria, de que modo o negacionismo tem penetrado em camadas de populações relativamente escolarizadas e qualificadas? O que podem fazer o Estado e a comunidade científica a este propósito, de modo a contrariar os efeitos do negacionismo?

O negacionismo da Covid-19 é um remake do negacionismo do HIV/SIDA que se expressou a partir dos anos oitenta do século passado, se bem que o eco mediático então ter tido uma amplitude bem menor do que aquele que se faz ouvir hoje (não existia Internet nem redes sociais). As ligações do ativismo negacionista à extrema direita são bem conhecidas e os objetivos são claros. A pandemia, para além da crise sanitária, mergulhou os países numa crise económica e social cujos efeitos são transversais a todas as classes sociais, proporcionando assim as condições para o aproveitamento populista das dificuldades atribuídas ao “sistema” e “governos ditatoriais”. O combate ao negacionismo deve ser feito em vários planos. No plano oficial as autoridades de Saúde devem empenhar-se em transmitir à população (inclusive através de anúncios nos media) informação pedagógica sobre todas as matérias relacionadas com a pandemia. No plano mediático deve existir mais intervenção de comentadores e articulistas especializados de modo a contrariar a desinformação científica e argumentação negacionista, e os canais de televisão devem banir os comentadores que pregam pela cartilha negacionista. O ativismo negacionista constitui uma ameaça à saúde pública e tem vindo a “evoluir” para o insulto e arruaça. Assim, exige-se que o Estado de Direito deixe de tolerar a atividade destes grupos com o laxismo e benevolência que se tem verificado até agora.

4 – Para além da divulgação científica que os cientistas têm realizado, considera necessárias novas formas de educação para a ciência? Faz sentido equacionar políticas públicas (tanto ao nível governamental como universitário e escolar) desenhadas especificamente para a divulgação de conhecimentos e do método científico, ou os instrumentos existentes parecem-lhe suficientes?

Para além das iniciativas da Ciência Viva e outras, as universidades devem proporcionar visitas de estudo e curtos estágios aos alunos do Secundário para que estes acompanhem de forma ativa os projetos de investigação em curso nos laboratórios dos diferentes Departamentos. No que respeita à divulgação do conhecimento científico ao público é necessário um empenhamento dos media a vários níveis. As redações dos jornais e televisões devem ser assessoradas por cientistas de diversas áreas para que os jornalistas sem formação científica consigam transmitir corretamente ao público notícias sobre temas científicos de um modo entendível. Os cientistas por seu lado, devem também fazer a sua aprendizagem no que respeita à divulgação do conhecimento e método científico através dos media. Para tal não basta ser especialista na matéria, exige-se capacidade de comunicação. Um exemplo interessante chega-nos do Departamento de Jornalismo da Universidade Concórdia de Montréal. que organiza cursos intensivos de Verão destinados a cientistas para que estes aprendam a transmitir Ciência à sociedade. (Projected Futures 4, https://www.concordia.ca/artsci/journalism/programs/journalism-studies.html).

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