Dimensão analítica: Cultura, Artes e Públicos
Título do artigo: Nos 40 anos de Memorial do Convento. Um complexo triângulo – narrativa, contexto histórico de produção e inovação artística
Autor: João Aguiar
Filiação institucional: Instituto de Sociologia da Universidade do Porto
E-mail: jaguiar@letras.up.pt
Palavras-chave: Literatura, José Saramago, campo literário.
1. A narrativa e o pano histórico de fundo
Decorrida durante o reinado de D. João V, a narrativa de Memorial do Convento (doravante MC) inclui eixos temáticos com uma dimensão genealógica sobre a construção da nação portuguesa. A partir de uma estrutura dualista, MC tem como conflito subjacente a toda a história (central) de amor e de peripécias de Baltasar e Blimunda, o embate entre a edificação de uma conceção monumental de poder político e uma nação de construtores e sonhadores. A própria inserção histórica deste romance na primeira metade do século XVIII, época de consolidação do Estado português na era Moderna [1], permite reforçar o embate entre as duas conceções de nação em jogo em MC.
No que lhe diz respeito, a identificação da nação dominante será aqui definida em torno de dois eixos principais. Por um lado, a evocação de um certo provincianismo e de uma tacanhez intelectual anticientífica e anti moderna, tornando o país num “bom prato (…) para galhofas estrangeiras” [2]. Este traço que se institucionalizaria paradoxalmente com o pico do ouro proveniente do Brasil (então uma colónia portuguesa) teria como reverso da medalha a subserviência do Estado português aos interesses de outros países [3]. Por outro lado, a nação dominante expressa em MC imbrica-se com uma conceção de monumentalidade do poder político, o poder das instituições religiosas e da classe senhorial.
Numa abordagem formal e lírica mais elegante, em MC assiste-se a um reiterar da existência de uma nação popular defronte da nação das classes dominantes. Condensando no processo de edificação do Convento de Mafra um retrato da dualidade e do fosso entre duas nações internas a um mesmo país, o romance integra inúmeras referências sobre “estes que andam aqui a construir o convento” [4]. Ora, a construção do Convento condensa aspetos da formação da nacionalidade portuguesa moderna. Com o recurso a trabalho compulsório proveniente de todo o país, o 18º capítulo descreve, com algum detalhe, vicissitudes de operários da construção provenientes de Mafra, Pombal, Porto e Alentejo. Este processo auxiliaria à consolidação de uma consciência coletiva comum, “pedras portuguesas afeiçoadas por portuguesas mãos” [5].
2. Contexto histórico de produção da obra literária e trajetória do escritor
A existência destas duas nações conflituantes, ou se se preferir de duas visões opostas para um mesmo espaço nacional, corresponderia ao impacto do contexto histórico português do início dos anos 80 na própria produção deste romance? Passado o período revolucionário de 1974-75, José Saramago acabaria por se dedicar em exclusivo à vida literária. Se Levantado do Chão (1980) pode ser descrito como um romance de temática plenamente neo-realista dentro de uma construção formal propriamente saramaguiana, MC (1982), do ponto de vista do cruzamento entre o conteúdo e a estética, representa um corte na obra do autor.
Se no romance anterior, a temática da luta de classes e da luta dos operários agrícolas alentejanos contra o regime fascista português determina a movimentação das próprias personagens, em MC ocorrem pelo menos dois processos indicativos das transformações operadas. Num primeiro ponto, o pano de fundo histórico de MC vai operar uma transformação plena: inversamente ao romance de 1980 onde existia um conflito social permanente (e em que as personagens pouco mais seriam do que corporazições humanizadas dos diferentes lados da luta de classes), em MC a constituição de duas nações separadas aludidas anteriormente – a nação dos poderosos e a nação popular – representa o triunfo da ordem. O triunfo de uma realidade dual, oposta mas já não conflitual.
Num segundo ponto mais propriamente estético, em MC as personagens vivem por si mesmas, determinam ações, promovem relações entre si e o seu embate com a História perde um pendor de participação individual num movimento social coletivo. Inversamente, a autonomia relativa das personagens nas circunstâncias do tempo histórico em específico (o século XVIII) coaduna-se com uma maior afirmação pessoal (de cada personagem) no seio da narrativa. Na personagem Blimunda existe a capacidade (um dom mágico) de, numa situação de jejum, ver por dentro as pessoas e os objetos e de recolher as vontades de cada um. Ora, serão essas vontades transmutadas em éter que permitirão o voo da Passarola concetualizada pelo padre Bartolomeu de Gusmão. Blimunda, tal como as restantes personagens principais, representa uma personagem absolutamente inovadora, dando voz a uma mulher jovem com uma idiossincrasia única. De realçar a conjugação das vozes únicas do casal Blimunda/Baltasar num microcosmos imaginativo, onde convergem a parceria amorosa incondicional entre si, e o convívio com a heresia heterodoxa de Bartolomeu Gusmão e a placidez estética do pianista Scarlatti (ambos recriações literárias de personalidades reais). Em última análise, a ação de cada indivíduo não rompe completamente com o contexto histórico mais geral. E se o destino de Baltasar desagua no último auto-de-fé realizado em Portugal (em 1739), é impossível não reconhecer o grau de auto-determinação detido por aquelas quatro personagens.
3. Rumo a um aprofundamento da inovação artística
A anterior caracterização permite enquadrar esteticamente MC como muito mais do que um romance histórico. E compõe um elemento adicional para compreender o impacto da obra em questão. De facto, MC representou uma autêntica pedrada no charco na forma como se escreve ficção em português, na medida em que as personagens ultrapassam a constituição de joguetes da História e criam universos semânticos e vivenciais idiossincráticos. Dizer que MC é um romance de personagens ultrapassa a mera tautologia. Seria a articulação entre a inovadora construção de personagens, o estilo saramaguiano no burilar de parágrafos, frases e diálogos e um pano de fundo histórico que iria alçar o autor a níveis inauditos de consagração literária. Importa referir que, em 1982, MC seria preterido pelo romance Balada da Praia dos Cães de José Cardoso Pires, aquando da atribuição do Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores (APE), facto que ainda hoje [6] continua a fazer parte das discussões do campo literário português. E já que se menciona o campo literário, MC representou o que acima se designou como uma pedrada no charco, na exata medida em que correspondeu ao princípio orientador e mobilizador das aspirações dos agentes desse campo: a busca por uma obra de arte inovadora e que interpele o seu (e/ou um outro) tempo histórico. Se Balada da Praia dos Cães representava como que uma espécie de ajuste de contas com o passado ditatorial, MC abriria um caminho ao autor que culminaria em década e meia depois no primeiro Nobel da Literatura de língua portuguesa. O que em 1982 foi percecionado como um lampejo de genialidade fora do núcleo dominante no campo literário português, dezenas de edições e de traduções pelo mundo fora e 40 anos depois tornou-se familiar ao leitor regular da obra saramaguiana. De romance esteticamente inovador, MC transmutar-se-ia num clássico.
Desse ponto de vista, MC afigura-se como uma obra literária interpeladora do saber sociológico a diversos níveis. Num tabuleiro de reflexão sociológica existem camadas mais óbvias – a contextualização sócio-histórica endereçada na obra ou as circunstâncias históricas (e) da trajetória pessoal do escritor. Adicionalmente, a criatividade específica de um artista e o seu contributo idiossincrático para a inovação estética é muitas das vezes negligenciada. Mais ainda quando essa inovação singular coincide com um trajeto literário subsequentemente atravessado por um correlativo sucesso comercial e um reconhecimento inter-pares com expressão internacional. Nesta ocasião singular – criadora ela própria de um micro-contexto histórico – a articulação sociológica das diferentes camadas deverá ser capaz de integrar os diversos componentes constitutivos de um trajeto literário.
Paradoxalmente, ou não, MC tornou-se num romance histórico icónico da literatura em português precisamente porque se constituiu num puzzle singular de interseção entre a trajetória histórica de um país e de um escritor, num enredo com um pano de fundo histórico específico (a construção do Convento de Mafra no século XVIII) e a própria idiossincrasia estética plasmada na obra.
Notas:
[1] Hespanha, A.M. (1994). As Vésperas do Leviathan. Instituições e Poder Político em Portugal no Século XVII. Lisboa: Almedina.
[2] Saramago, J. (2000). Memorial do Convento. 32ª ed. Lisboa: Caminho, 2000. p.85.
[3] Idem, p. 60 e 36.
[4] Idem, p. 222.
[5] Idem, p.111.
[6] https://www.dn.pt/cultura/ha-coisas-que-jose-cardoso-pires-fez-que-sao-condenaveis-mas-nao-sou-juiz-13879072.html
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