O desafio de olhar para além do verde: contributos para uma sociologia dos espaços verdes

Dimensão analítica: Ambiente, Espaço e Território

Título do artigo: O desafio de olhar para além do verde: contributos para uma sociologia dos espaços verdes

Autor/a: Diogo Guedes Vidal, Helena Vilaça, Nelson Barros, Rui Leandro Maia

Filiação institucional: Universidade Fernando Pessoa e Universidade do Porto

E-mail: diogoguedesvidal@hotmail.com

Palavras-chave: Espaços verdes urbanos, Desigualdades ambientais, Sociologia dos espaços verdes.

Os espaços verdes urbanos podem ser definidos como qualquer vegetação encontrada em contexto urbano, incluindo parques, espaços abertos, jardins residenciais ou árvores de rua [1], cuja manutenção é da responsabilidade do poder local, devendo ser totalmente acessíveis e promotores de socialização [2]. A literatura de especialidade é reveladora dos múltiplos benefícios do ponto de vista social e ambiental, nomeadamente através de quatro vetores propostos por Hartig et al. [3]: (i) melhoria da qualidade do ar (condicionada, em parte, pela escolha das espécies arbóreas) e do meio ambiente, mitigação de temperaturas extremas, redução de ruídos e depleção de poluentes atmosféricos; (ii) aumento da atividade física; (iii) promoção de espaços de socialização e de coesão social entre os seus utilizadores; (iv) redução dos sintomas de stress, contribuindo para o bem-estar físico e mental.

Fruto de uma maior consciencialização sobre a importância da natureza em contexto urbano, verifica-se uma crescente preocupação, alicerçada empiricamente pela realidade do sul da Europa (onde Portugal se insere), referente a um declínio no acesso a espaços verdes urbanos públicos associado ao desenvolvimento das cidades, o que resulta na diminuição das oportunidades de contato e convivência das pessoas com a natureza [1]. Fruto desta evidência, emergem fenómenos complexos de iniquidades ambientais que encontram na estruturalidade das desigualdades sociais a sua força motriz. Na verdade, ainda que os contributos dos diferentes campos do conhecimento no domínio dos espaços verdes sejam relevantes e, sobretudo, reveladores da sua multidimensionalidade, a verdade é que parece faltar um olhar sociológico sobre este objeto. Até ao momento, a investigação tem-se centrado, e bem, na produção de conhecimento para melhorar a qualidade do ambiente urbano e promover o bem-estar da população. Contudo, tem-se negligenciado as deficiências e as desigualdades estruturais que são constantemente reproduzidas no tecido urbano [4]. Os espaços verdes não podem ser entendidos como fins, mas, antes, como meios.

Pesem embora os valiosos contributos da sociologia do ambiente, a verdade é que o seu foco, por força da afirmação do seu campo disciplinar, nomeadamente em Portugal, tem sido o das atitudes e valores, descurando, em parte, fenómenos mais complexos que se interligam com a questão das desigualdades. Paralelamente, a Escola de Chicago de Sociologia, que carece de uma revalorização teórica mas, sobretudo, metodológica, contribuiu para o reconhecimento de que a disposição de determinados espaços e lugares não derivava de um processo natural [5], sendo identificáveis padrões espaciais dos comportamentos sociais. Sabemos hoje que as comunidades em maior privação socioeconómica são também as que possuem menos acesso a espaços verdes em termos de qualidade e quantidade [6], [7]. Numa lógica de exercício, a ligação da temática dos espaços verdes urbanos com os vetores das desigualdades propostas por Therborn [8] é passível de ser estabelecida. As “desigualdades vitais” perante a vida, a morte e a saúde são visíveis quando identificámos que a prevalência de certas morbilidades, como depressão, alergias e outras, se intensifica em comunidades com um menor grau de exposição a áreas verdes, sendo que esta situação varia de acordo com as espécies arbóreas presentes. No campo das “desigualdades existenciais” e de “recursos”, verificámos que as possibilidades de usufruir de espaços verdes e ambientes saudáveis não são uma realidade universal nem tampouco “natural”. São resultantes das dinâmicas sociais e da luta do espaço físico e simbólico [9], igualmente visíveis na desigualdade no acesso a recursos ambientais.

Os próprios utilizadores dos espaços verdes estão conscientes de fenómenos de injustiça ambiental. No contexto português, um inquérito dirigido aos utilizadores dos espaços verdes da cidade do Porto [10], que também procurou traçar o seu perfil sociodemográfico, é revelador de que tais espaços, quando em áreas de maior privação socioeconómica e ambiental, são percecionados pelos seus utilizadores como de menor qualidade. Quando questionados sobre se o espaço verde que frequentam satisfaz as suas necessidades, as avaliações referentes a “não satisfaz” e a “satisfaz pouco” aplicaram-se, na sua totalidade (100%), a espaços verdes localizados num cluster de alta privação socioeconómica e ambiental da cidade, o que demonstra um grau de insatisfação por parte dos seus utilizadores e uma associação com o grau de privação do contexto social envolvente. Relação inversa é encontrada na avaliação de “satisfaz plenamente” que foi atribuída, na sua maioria (61,5 %), a espaços verdes localizados num cluster de baixa privação. Acresce ainda que quando questionados sobre a qualidade dos espaços verdes da cidade do Porto, os utilizadores atribuíram “má qualidade” a espaços verdes localizados num cluster de alta privação. Similarmente, a avaliação de “qualidade insuficiente” é também, maioritariamente (80%), respeitante a espaços verdes localizados no mesmo cluster de alta privação. Por outro lado, é também notório por parte do poder público local, um desconhecimento do valor socioecológico destes espaços, acrescido por um conhecimento limitado sobre a sua governança que é, em parte, reforçado pela falta de estratégias municipais para sua gestão eficiente [11]. A falta de estratégias é visível nos Planos Diretores Municipais, revelando, por um lado, desconhecimento sobre os benefícios sociais e ecológicos dos espaços verdes em contexto urbano, sendo mais expressivo nos benefícios a longo prazo e na ausência de abordagens de sustentabilidade forte (o capital natural deve ser mantido e ampliado, não sendo substituível); por outro, na carência de estratégias de gestão destes espaços ao nível extramunicipal, ou seja, em que se reconhece que a gestão da infraestrutura verde urbana requer uma convergência intermunicipal de forma a potenciar os serviços dos ecossistemas.

Perante esta realidade, a interpretação dos usos dos espaços verdes urbanos e a apropriação do espaço público, olhando para além do verde, afiguram-se como terrenos férteis e pouco explorados do ponto de vista sociológico. Tal como o conceito de “heterotopia” que Foucault refere, os espaços têm mais significado ou relações sociais do que as que são imediatamente visíveis, sendo necessário desconstruir o lugar para que se possa efetivamente conhecê-lo.

Notas:

a) Investigação financiada pela FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, através do projeto SFRH/BD/143238/2019, ao abrigo de apoios do Fundo Social Europeu, Fundos Nacionais do MCTES e pelo Programa Operacional de Capital Humano. Os autores agradecem ainda ao FP-ENAS, unidade de I&D 4546 reconhecida pela FCT.

[1] Kadja, N. & Haase, D. (2013). Green spaces of European cities revisited for 1990-2006. Landscape and Urban Planning, 110(1), pp. 113–122.

[2] Kohn, M. (2004), Brave New Neighborhood, Abingdon: Routledge.

[3] Hartig, T., Mitchell, R., de Vries, S., & Frumkin, H. (2014). Nature and Health. Annual Review of Public Health, 35, pp. 207–208.

[4] Jennings, V., Reid, C.E., & Fuller, C.H. (2021). Green infrastructure can limit but not solve air pollution injustice. Nature Communications, 12, pp. 4681.

[5] Park, R.E. (1915). The city: Suggestions for investigation of human behavior in the urban environment. American Journal of Sociology, 20(5), pp. 577–612.

[6] Hoffimann, E., Barros, H. & Ribeiro, A.I. (2017). Socioeconomic inequalities in green space quality and Accessibility—Evidence from a Southern European city. International Journal of Environmental Research and Public Health, 14(8), pp. 916.

[7] Vidal, D.G., Fernandes, C.O., Viterbo, L.M.F., Vilaça, H., Barros, N., & Maia, R.L. (2021). Combining an Evaluation Grid Application to Assess Ecosystem Services of Urban Green Spaces and a Socioeconomic Spatial Analysis. International Journal of Sustainable Development & World Ecology, 28(4), pp. 291–302.

[8] Therborn, G. (2006). Inequalities of the World: New Theoretical Frameworks, Multiple Empirical Approaches, Brooklyn: Verso.

[9] Lefebvre, Henri (1974). La production de l’espace, Paris: Éditions Anthropos.

[10] Vidal, D.G., Fernandes, C.O., Viterbo, L.M.F., Vilaça, H., Barros, N., & Maia, R.L.  (2021). Usos e Perceções sobre Jardins e Parques Públicos Urbanos: Resultados Preliminares de um Inquérito na Cidade Do Porto (Portugal). Finisterra 56(116), pp. 137–157.

[11] Dias, R.C.; Vidal, D.G., Seixas, P.C., & Maia, R.L. (2020). Os Espaços Verdes e as Preocupações com a Sustentabilidade nos Planos Diretores Municipais de 3a Geração: Análise Comparativa das Áreas Metropolitanas em Portugal. CIDADES Comunidades e Territórios, 41, 84–99.

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