Dimensão analítica: Cultura, Artes e Públicos
Título do artigo: Graffiti x Anti-graffiti: o embate no espaço público
Autor: Tito Senna
Filiação institucional: Mestrado em Artes e Design para o Espaço Público. Universidade do Porto
E-mail: titosenna@gmail.com
Palavras-chave: graffiti, arte urbana, espaço público.
Frames do vídeo onde o administrador do conjunto habitacional da Bouça realiza uma cobertura parcial da parede. Registro feito pelo autor (2019).
O graffiti surgiu da necessidade do ser humano se expressar no espaço público, de verbalizar espacialmente a sua existência mesmo que indesejada. É incontestável a onipresença do graffiti nos ambientes urbanos das grandes metrópoles.
Mais do que uma demarcação de território ou uma expressão juvenil inconsequente — o que alguns críticos chamariam de síndrome de Peter Pan — o graffiti é um elemento que revela as feridas da cidade e a exclusão social, transitando entre o público/privado, o subversivo/serviçal, o legal/ilegal de maneira bravia e admirável.
Segundo Celso Gitahy [1], “um dos aspectos conceituais mais interessantes e nevrálgicos encontrados nessa linguagem é, sem dúvida, a questão da proibição, sempre presente, qual sombra, sobre aqueles que ousam fazer graffiti. Ao observarmos a proibição, percebemos que ela está intimamente ligada ao conceito de propriedade privada, ou seja, o que pensará o proprietário do espaço ao ver a sua propriedade grafitada”.
Não há como separar o graffiti das ações anti-graffiti. Nesta dinâmica, surge o sujeito que reage às intervenções: o proprietário. Essa dialética, de ocupação e “limpeza” — pelo direito ou pela força — é uma das motrizes dessa cultura. Como diz Schacter [2], “o graffiti causa uma reação. Não pode haver dúvida disso. Se este a reação é positiva ou negativa é controversamente debatida, mas, no entanto, não pode haver hesitação em aceitar a capacidade do graffiti de obter e fazer cumprir uma resposta”.
Os escritores de graffiti transitam entre o bem/mal, o legal/ilegal causando expondo os paradoxos da sociedade. É evidente que cidade sofre outras apropriações ilegais — por parte de governos e empresas — mas não geram tanta reação quanto o graffiti provoca. Isso se dá devido à visualidade da escrita, que ao ser colocado na parede, ocupa um espaço visual da paisagem e fica suscetível aos olhares de todas as classes sociais.
Paradoxalmente, a colisão entre o anonimato e os olhares do público geram audiência. O sucesso não é composto apenas por adeptos, os haters contribuem para espalhar a fama. A política reativa a exemplo da câmara municipal de Nova Iorque, criou o “The Clean Train Movement” nos anos 80, criminalizando o graffiti nas estações de metro, resultando em ocupações de outros territórios da cidade.
De certa maneira, apagar um graffiti pode parece uma forma simples de inibir tais intervenções, mas, na prática, pode resultar no contrário. O caso do paredão em frente a estação de metro da Lapa, no Porto, é um exemplo. A parede do Conjunto Habitacional da Bouça — projeto assinado pelo arquiteto Álvaro Siza Vieira — mede cerca de 120 metros e possuí 3 pavimentos. O local é conhecido pela ocupação de muitos graffitise pelo intenso combate a prática.
Na tentativa de coibir, o administrador do conjunto optou pela estratégia de apagar parcialmente os graffitis, como uma forma de desencorajar os writers. O ato de rasurar um graffiti, é entendido no círculo dos grafiteiros como uma atitude desrespeitosa, contudo, neste caso, os writers percebem que se trata de uma ação externa ao grupo e entendem a coação como uma validação para reativar o espaço. É como se a ação do administrador ao cobrir um graffiti, validasse uma re-pintura e a circunstância permitisse cobrir o graffiti rasurado.
Apesar do ciclo resultante dessas forças, o graffiti e as ações anti-graffiti tem uma relação de complementaridade, como observada pela socióloga Lígia Ferro [3]; “existe uma relação de dependência entre estes dois grupos, pois o artista depende do trabalhador de limpeza para que sejam criados novos espaços para pintar, e o trabalhador de limpeza precisa do writer para ter emprego. Assim vemos uma estrutura que nasce de um processo de combate e oposição ao graffiti assentar em ciclos de interdependência entre esses dois universos (o do graffiti e o da limpeza)”.
A “limpeza” é mais que um mero apagamento, são sobreposições de camadas de pintura. O que acontece na parede torna-se uma construção coletiva. O resultado dessa dialética reflete na particularidade do espaço. Esses eventos tornam a parede do conjunto habitacional algo singular, dinâmico, evidenciando uma cidade viva.
De certa maneira o graffiti é uma ferramenta que dá voz àqueles que são silenciados através das relações de poder. Através do graffiti, os coadjuvantes da cidade protagonizam-se no espaço, seja de forma reivindicatória, provocativa ou até mesmo despretensiosa.
A intervenção urbana é um agente transformador. Mais do que ser notado e ser reconhecido, as pessoas querem comunicar-se criticamente no espaço. E o graffiti — e o seu combate — são formas de exercer esse direito de mudar a cidade. O exercício desse direito tem um efeito coletivo, positivo ou não, são fatores que incentivam a tirar a sociedade da passividade. “A liberdade de construir e reconstruir a cidade e a nós mesmos é um dos mais preciosos e negligenciados direitos humanos” [4]. Independente dos adeptos e haters, o graffiti e a arte urbana são formas de exercer a liberdade deste precioso direito de transformar o espaço de quem faz e de quem vê.
Referências:
[1] Gitahy, C. (1999). O que é grafite. Braziliense, São Paulo.
[2] Schacter, R. (2008). An ethnography of Iconoclash: An investigation into the production, consumption and destruction of street-art in London in Journal of Material Culture, nº 13, pp. 35-61.
[3] Ferro, L. (2016). Da rua para o mundo: etnografia urbana comparada do graffiti e do parkour. (1 ed.). Lisboa: ICS.
[4] Harvey, D. (2012). O Direito à Cidade. Lutas Sociais. n.29, p.73-89. São Paulo.
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