Adiamento da maternidade e preservação da fertilidade – Parte 2

Dimensão analítica: Saúde e Condições e Estilos de Vida

Título do artigo: Adiamento da maternidade e preservação da fertilidade – Parte 2

Autora: Catarina Delaunay

Filiação institucional: Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.NOVA), Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (NOVA FCSH)

E-mail: catarinadelaunay@fcsh.unl.pt

Palavras-chave: Tendências sociodemográficas, adiamento da maternidade, preservação da fertilidade.

No contexto do adiamento da maternidade, é de reter a tendência crescente para a procura de preservação da fertilidade em mulheres férteis saudáveis. A utilização de técnicas de criopreservação de ovócitos (ou até mesmo de tecido ovárico) surgiu inicialmente no âmbito da doença oncológica, na medida em que por vezes os tratamentos mais invasivos (como a quimioterapia) podiam comprometer, em termos futuros, a fertilidade ou capacidade reprodutiva da mulher. Essa hipótese era também oferecida aos homens com a possibilidade de congelarem esperma ou tecido testicular previamente ao início dos tratamentos.

No entanto, decorrente da atual tendência para o adiamento da maternidade devido a diversos fatores socioeconómicos, mas também devido à própria evolução dos valores relativos ao papel da mulher na sociedade, essa hipótese foi alargada a mulheres sem nenhuma doença associada. Isto porque as mulheres podem ser afetadas por problemas de infertilidade relacionados com a idade quando finalmente decidem conceber. Esta opção chegou mesmo a ser incentivada, como aconteceu em 2014, quando duas das grandes empresas tecnológicas internacionais (a Apple e o Facebook) se disponibilizaram a pagar às suas funcionárias pela criopreservação dos seus ovócitos em troca de uma maior dedicação profissional. Na altura, a notícia surgiu envolvida em polémica pelas implicações que envolvia e pelas várias leituras que poderia ter. Nomeadamente se esta oferta de apoio corresponderia à criação de oportunidades acrescidas de progressão na carreira por parte destas mulheres no sentido de conseguirem alcançar cargos de chefia, ou se, pelo contrário, seria um condicionamento ou restrição à liberdade e autonomia femininas ao não lhes serem proporcionadas as melhores formas de conciliação entre trabalho e família, quer a nível de políticas públicas quer em termos de cultura empresarial.

As técnicas de preservação da fertilidade constituem atualmente um tópico cada vez mais em discussão no contexto do adiamento voluntário da gravidez, sendo designada de criopreservação eletiva de ovócitos ou preservação social da fertilidade. A nível nacional, um exemplo da preocupação com este tema é a recém-lançada plataforma “Quando estiveres pronta”, patrocinada pela Sociedade Portuguesa de Medicina da Reprodução, que procura sensibilizar as mulheres para os limites da sua capacidade reprodutiva e informá-las acerca da fisiologia normal do aparelho reprodutor e da possibilidade de preservarem a fertilidade. Ou seja, que procura promover uma maior consciencialização das mulheres acerca do incontornável relógio biológico.

O principal argumento contra o congelamento de ovócitos (vitrificação) por mulheres saudáveis é a ausência de uma razão médica (Kostenzer et al, 2021), embora, para alguns autores, esta dicotomia entre razões médicas e sociais seja questionável e deva ser abolida (Pennings, 2013). Esta questão é extremamente importante, uma vez que os rótulos dominam o debate ético e político atual, traduzindo-se inclusive em políticas públicas, como seja o acesso equitativo à assistência médica à reprodução e o reembolso público dos respetivos tratamentos. Para além do debate no que respeita ao financiamento público, é igualmente de salientar a vertente especulativa e de racionalidade neoliberal associada ao fenómeno, não só em termos de produtos financeiros e mercados de capitais, com a criação de infraestruturas clínicas e comerciais (van de Wiel, 2020), como também ao nível dos próprios indivíduos, levados a assumir uma autorresponsabilidade em termos de cálculo orientado para o futuro e gestão do risco (Baldwin et al., 2018; Myers & Martin, 2021).

Outro aspeto fundamental é o das implicações do adiamento da maternidade em termos de relações intergeracionais. Uma maternidade tardia poderá estar associada a um conjunto de benefícios: um maior planeamento da gravidez; uma maior maturidade por parte da mulher para lidar com diversas questões que envolvem criar uma criança, decorrente da sua maior experiência de vida e de uma maior segurança no papel de mãe; uma maior estabilidade laboral e financeira, que lhe permitem assegurar as diversas despesas que criar um filho envolve; um maior disponibilidade de tempo para se dedicar à maternidade e de melhor vivenciar cada etapa do crescimento da criança.

No entanto, a maternidade tardia também envolve desafios, ansiedades ou inquietações: dúvidas sobre ter suficiente tempo de vida para acompanhar o crescimento do filho até à idade adulta; limitações físicas e funcionais (menor agilidade, energia e vitalidade); dificuldades de relacionamento entre progenitores mais idosos e filhos, sobretudo na adolescência, devido à maior diferença de idades e consequente diferença de mentalidades; a sobreposição de etapas distintas do ciclo de vida (cuidar de filhos na fase da infância e/ou adolescência, prestação de cuidados informais a ascendentes dependentes e gestão da meia-idade); um elevado grau de dependência dos pais idosos em fases precoces da vida dos filhos.

Bibliografia:

Baldwin, K., Culley, L., Hudson, N., & Mitchell, H. (2018). Running out of time: exploring women’s motivations for social egg freezing, Journal of Psychosomatic Obstetrics & Gynecology. doi: 10.1080/0167482X.2018.1460352

Kostenzer, J., Bos, A. M. E., de Bont, A., & van Exel, J. (2021). Unveiling the controversy on egg freezing in The Netherlands: A Q-methodology study on women’s viewpoints. Reproductive BioMedicine and Society Online, 12, 32– 43. doi: 10.1016/j.rbms.2020.09.009

Myers, K.C., & Martin, L. J. (2021). Freezing time? The sociology of egg freezing. Sociology Compass, e12850. doi: 10.1111/soc4.12850

Pennings, G. (2013). Ethical aspects of social freezing. Gynécologie Obstétrique & Fertilité, 41(9), 521-523. doi: 10.1016/j.gyobfe.2013.07.004

van de Wiel, L. (2020). The speculative turn in IVF: egg freezing and the financialization of fertility. New Genetics and Society, 39(3), 306-326. doi: 10.1080/14636778.2019.1709430

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