Zonas Críticas do Antropoceno

Dimensão analítica: Ambiente, Espaço e Território

Título do artigo: Zonas Críticas do Antropoceno

Autor: Paulo Castro Seixas, Ricardo Cunha Dias e Diogo Guedes Vidal

Filiação institucional: CAPP, ISCSP, Universidade de Lisboa; FP-ENAS, Universidade Fernando Pessoa

E-mail: pseixas@iscsp.ulisboa.pt; rdias@iscsp.ulisboa.pt; diogovidal@ufp.edu.pt

Palavras-chave: Zonas Críticas do Antropoceno, Bens Comuns Globais, Direito de Ingerência.

O conceito de Antropoceno, proposto por Crutzen e Stoermer (2000) [1], evidencia uma nova época geológica da Terra em que os humanos substituíram a natureza enquanto força ambiental dominante no planeta. Lidar com a diversidade de tais processos implica, como referem Viola e Basso (2016) [2], a concertação internacional em torno dos bens comuns globais e uma cessação parcial da soberania dos Estados em prol de uma governança global efetiva. A proposta que fazemos neste texto é a da existência de a) Zonas Críticas do Antropoceno, procurando uma primeira aproximação ao conceito, assim como uma tentativa de tipologia; para b) considerar tais Zonas Críticas como Objectos Científicos Prioritários das Ciências da Sustentabilidade, possibilitando c) sustentar um Quadro Normativo de Direito Público Internacional que as classifique como um Bem Comum Global Crítico, eventualmente implicando um Direito de Ingerência Planetário.

Zonas Críticas do Antropoceno é um conceito construído dedutivamente. No quadro de um espírito do tempo, natural se torna que outros conceitos similares existam. De uma breve análise ressalta desde logo o conceito geológico de ‘Zona Crítica’ cunhado por Gail Ashley [3] em 1998. A ‘zona Crítica’ para Ashley é “a fina pele viva da Terra, que se estende do topo da cobertura vegetativa até o fundo do lençol freático”. Por outro lado, Nakicenovic et al. (2016) [4] utilizaram o conceito ‘Biomas Críticos’ para evidenciar ‘os sistemas de suporte de vida na terra’, atingindo cinco tipos: Florestas Tropicais; Florestas Boreais; Atmosfera, Criosfera e Hidrosfera. O problema destes conceitos é que, tal como o de Antropoceno, apesar de terem implícito o ser humano no centro, não evidenciam as dinâmicas sociais, faltando-lhes uma leitura sociológica de base.

Num quadro mais sociológico, o conceito de ‘Zonas Sacrificiais’ (cuja genealogia remonta à Guerra Fria e ao Medo do Nuclear) constrói-se numa crítica de economia política e carateriza zonas de extrativismo ou espoliação, numa concepção do Antropoceno como uma produção capitalista ou Capitaloceno, conceito usado pela primeira vez em 2009, por Andreas Malm (Moore, 2016) [5] e adotado e desenvolvido por diversos autores, como Donna Haraway, Tony Weis e Jason Moore. Numa perspetiva de Ecologia Política, o Atlas de Justiça Ambiental (Scheidel et al., 2020) [6] identifica o que podemos chamar ‘zonas de conflitos ambientais’ (opondo infratores e protetores ambientais).

O problema dos primeiros conceitos (‘Zona Crítica’ ou ‘Biomas Críticos’) é não evidenciarem uma perspectiva sociológica; já os últimos conceitos referidos (‘zonas sacrificiais’ e ‘zonas de conflitos ambientais’), sendo sociologicamente construídos, partem ambos de um quadro de ambientalismo de luta que, ainda que útil, não evidencia outras possibilidades de compromisso, capazes de promoverem a mudança cidadã e ativadoras de uma governança scale up. É nesse sentido que propomos o conceito de ‘Zonas Críticas do Antropoceno’, o qual procura ser uma aproximação interdisciplinar entre as concepções da ecologia (Zona Crítica e Bioma Crítico) e as concepções sociológicas (Zonas Sacrificiais e Zonas de Conflito), mas numa abertura a uma perspectiva mais abrangente.

Podemos conceber como Zonas Críticas do Antropoceno aquelas em que existe um forte impacto da relação entre concepções e resultados do ‘Antropoceno Mau’ (o Paradigma do Excepcionalísmo Humano e a colonialidade sobre a Natureza – o extrativismo) e concepções e resultados do ‘Antropoceno Bom’ (o Novo Paradigma Ecológico, e a convivencialidade com a Natureza – Buen Vivir). Se o Antropoceno se mede pela relevância dos sedimentos humanos, cremos poder-se propor quatro tipos de Zonas Críticas: as Zonas Críticas Cinzentas (zonas em que a urbanização espoliou a natureza); as Zonas Críticas Azuis (zonas de luta entre a subida das águas do mar e as instalações humanas); as Zonas Críticas Verdes (zonas de luta entre a manutenção de pulmões do planeta e o extrativismo/industrialismo) e as Zonas Críticas Castanhas (as zonas sacrificiais, mineiras e lixeiras).

Esta classificação, ao ter como base uma nova era planetária, geo-sócio-antropológica, implica desde logo uma escala de análise global. O mapeamento das Zonas Críticas do Antropoceno tem de ser feito a nível global, ainda que a governação adaptativa implique uma governança multinível. Podemos, claro, perguntar-nos qual a utilidade conceptual desta classificação para um país como Portugal. A identificação destas zonas críticas globais possibilita desde logo perceber a situação de cada país no presente, ao mesmo tempo que possibilita uma estratégia de prevenção de riscos, assim como políticas sociais preventivas. Desde logo, Portugal faz parte das Zonas Criticas Azuis, havendo já um mapeamento das zonas inundáveis para 2050 [7]. Também sabemos que Portugal, em função das reservas de Lítio [8], está em perigo de criar Zonas Castanhas. Quanto às Zonas Cinzentas e Verdes, mesmo se porventura não forem mapeadas em termos de risco global, esta classificação implica desde logo uma maior consciência de cultura regenerativa em relação às nossas cidades e uma crítica na governação adaptativa na relação entre áreas florestais, incêndios e proteção de zonas construídas.

A vantagem que encontramos nesta proposta de classificação é que ela possibilita uma relação com outros conceitos de compromisso positivo pela mudança. Assim, em todas as Zonas há que propor, narrar e medir boas práticas e indicadores de governação adaptativa. Nas Zonas Cinzentas, devemos dar uma atenção especial ao papel das Culturas Regenerativas; nas Zonas Azuis trata-se essencialmente de Processos de Resiliência, mais ou menos criativa; já nas Zonas Verdes é a conceção de Bem Comum Global que está em causa; e nas Zonas Castanhas, é o conceito de zonas prioritárias de consciencialização e de Ingerência Planetária que se impõe.

Todas estas zonas evidenciam processos de contradição, de luta, de consciencialização de uma cidadania transnacional e que implicam um Quadro Normativo de Direito Internacional Público que as inclua num património comum da humanidade. Tal implica a regulação do Capitaloceno, a emancipação de populações sacrificadas e uma consciencialização global no quadro de um planeta cognitivo que pugne por um Direito de Ingerência Planetário.

Notas:

[1] Crutzen, P. & Stoermer, E. (2000). The ‘Anthropocene, 41 Global Change Newsletter, pp. 17–18.

[2] Viola, E. & Basso, L. (2016). Sistema Internacional do Antropoceno, Revista Brasileira de Ciências Sociais (RBCS), 31(92), pp. 1–18.

[3] Ashley, G. (1998). Where are we headed? “Soft”rock research into the new millennium. Geological Society of America Abstract/Program, 30, p. A-148.

[4] Nakicenovic, N., Rockström, J., Gaffney, O., & Zimm, C. (2016). Global Commons in the Anthropocene: World Development on a Stable and Resilient Planet. IIASA Working Paper. IIASA, Laxenburg, Austria: WP-16-019.

[5] Moore, J. (2016). Anthropocene or Capitalocene? Nature, History, and the Crisis of Capitalism, San Francisco: PM Press.

[6] Scheidel, A., Del Bene, D., Liu, J., Navas, G., Mingorría, S., Demaria, F., Avila, S., Roy, B., Ertör, I., Temper, L., & Martínez-Alier, J. (2020). Environmental conflicts and defenders: A global overview, Global Environment Change, 63, p. 102104.

[7] Climate Central (2019). Coastal Risk Screening Tool, disponível em URL https://coastal.climatecentral.org/map/10/-8.6172/38.3708/?theme=sea_level_rise&map_type=coastal_dem_comparison&basemap=roadmap&contiguous=true&elevation_model=coastal_dem&forecast_year=2050&pathway=rcp45&percentile=p50&refresh=true&return_level=return_level_1&slr_model=kopp_2014

[8] Jornal Mapa (2019). Principais depósitos de lítio, disponível em URL https://www.jornalmapa.pt/wp-content/uploads/2019/05/mapa_mundolitio.png

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