Dimensão analítica: Economia, Trabalho e Governação Pública
Título do artigo: As novas roupagens da Inteligência Artificial: oportunidades e desafios
Autor: Ernesto Costa
Filiação institucional: Universidade de Coimbra
E-mail: ernesto@dei.uc.pt
Palavras-chave: Inteligência Artificial, Aprendizagem Automática, Direitos Humanos.
Vivemos num admirável mundo novo em que a tecnologia baseada nos computadores induziu uma profunda alteração na sociedade e no mundo. Testemunhamos o aparecimento do que alguns chamam de segunda revolução cognitiva, que junta a Internet das Coisas (IoT), a Computação na Nuvem e a Inteligência Artificial (IA). Os sistemas inteligentes estão em todos os sectores da atividade humana, seja na área da saúde, no sistema financeiro, no sistema judicial, nos sistemas de venda em linha, nas casas inteligentes, nos sistemas de comunicação, na fabricação, na distribuição, nos transportes, nos veículos autónomos, nos assistentes pessoais, na defesa, no ambiente, na indústria do entretenimento.
Este caminho começou a ser percorrido em agosto de 1956, quando John McCarthy promoveu um encontro com outros nove colegas para estudar a possibilidade das máquinas simularem o comportamento inteligente. Hoje, várias décadas depois do seu aparecimento, que balanço podemos fazer sobre o progresso e as realizações da IA? Desde logo importa constatar que, afinal, não existe uma IA, mas sim várias. Com efeito, existem os que defendem que o processo de construção de uma máquina inteligente se deve basear na identificação e na representação computacional dos mecanismos cognitivos de alto nível usados pelos humanos (abordagem simbólica). O edifício deve ser construído de cima para baixo. Num outro extremo estão os que defendem que, pelo contrário, um agente artificial inteligente deve ser construído da base para o topo, pois a inteligência é uma propriedade emergente resultante da interação de pequenas entidades “estúpidas” (abordagem neuronal e natural). Em pleno novo milénio, a IA continua o seu caminho de diversificação, reforçando os paradigmas não simbólicos e com o aparecimento de novas áreas e algoritmos centrados nos mecanismos cognitivos ou no funcionamento do cérebro humano, mas também guiados pelo modo como os organismos biológicos ou a natureza têm sabido, ao longo de milhões de anos, resolver um problema fundamental: sobreviver.
Atualmente assistimos ao florescimento de uma nova perspetiva na computação inteligente, passando de um mundo em que as pessoas fornecem às máquinas um conjunto de regras para elas seguirem com o objetivo de resolver problemas, para um mundo em que os humanos dão às máquinas problemas e as máquinas aprendem por elas próprias a resolvê-los. De uma computação guiada por primeiros princípios passamos a uma computação guiada pelos dados. O novo paradigma, conhecido por Aprendizagem Automática (AA), torna possível a existência de máquinas inteligentes que aprendem e se tornam autónomas. Mais recentemente, o aparecimento de novas arquiteturas conhecidas pelo nome de Redes Neuronais Profundas, conjugadas com o aumento do poder computacional das máquinas e a existência de grandes volumes de dados, vieram trazer avanços muito significativos nos domínios da visão por computador, na compreensão e síntese da linguagem natural ou nos jogos. Podemos já apreciar a existência de veículos autónomos, sistemas de diálogo como o Siri ou programas de jogos como o AlfaGoZero, graças à existência destas novas arquiteturas de AA.
Existe hoje um grande entusiasmo acerca da Inteligência Artificial. Os produtos de empresas como a Apple, a Amazon, a Google, a Netflix, a Facebook, a Microsoft, têm ajudado a popularizar a IA, criando ao mesmo tempo uma grande expectativa quanto ao futuro, que a publicidade, os media e o cinema de ficção têm amplificado. É bom que nos interroguemos sobre os problemas e as implicações que decorrem do uso dos novos sistemas inteligentes. Algumas das questões são, na sua aparência, científicas ou técnicas. Por exemplo, precisamos de melhorar a precisão dos nossos sistemas inteligentes. Nalgumas áreas, como a saúde, por exemplo, não é aceitável a existência de um número elevado de falsos negativos. Outro aspeto prende-se com o facto de os sistemas aprendizes andarem à procura de correlações, e podermos cometer o erro de confundir correlações com causalidade. Mais grave ainda é o facto de os sistemas atuais, baseados em redes neuronais profundas, serem opacos. Significa isto que a decisão não vem acompanhada por uma explicação que um humano possa entender. Mas para além das questões técnicas existem problemas, éticos e/ou legais, relevantes do ponto de vista da sociedade que importa ter presentes. Por exemplo, se um veículo autónomo estiver envolvido num acidente, a quem devo imputar a responsabilidade? Ao proprietário do veículo, ao construtor ou a quem desenvolveu o programa de controle do veículo? Um outro aspeto relevante tem que ver com o medo de muitos da possibilidade de ser criado um imenso contingente de desempregados, trocados por máquinas mais ou menos inteligentes. Há quem diga, por outro lado, que vamos realmente assistir ao desaparecimento de muitos empregos, mas que, como no passado, muitos outros empregos serão criados. Quem tem razão não sabemos ao certo, mas que deve ser motivo de preocupação não temos dúvidas. Por isso, somos forçados a interrogarmo-nos se o uso sem princípios e não regulado das aplicações baseadas em Inteligência Artificial, incluindo o recurso a sistemas aprendizes autónomos, não compromete e/ou entra em conflito com os direitos humanos e, em última análise, com a própria democracia. O exemplo do sistema de créditos sociais na China faz temer o pior.
Em Portugal, a Inteligência Artificial tem feito o seu caminho de modo consistente. Com o regresso de vários investigadores que foram fazer o doutoramento no exterior, no final dos anos 70 e princípios dos anos 80 do século passado, foram criadas várias unidades e centros de investigação nas principais universidades portuguesas. Em 1984 é criada a Associação Portuguesa para a Inteligência Artificial que dinamizou escolas de verão e uma conferência internacional (EPIA), levando à consolidação de uma comunidade de IA forte e reconhecida internacionalmente. Este ano, foi criado o Laboratório Associado em Sistemas Inteligentes (LASI) que reúne 13 unidades de I&D espalhadas pelo país. Se no plano da investigação estamos bem, já no relacionamento com as empresas, na definição de políticas públicas, ou ainda no que diz respeito à formação generalizada em IA, Portugal ainda está a dar os primeiros (tímidos) passos. Recentemente, for definida pelo governo a estratégia nacional para a IA (AI Portugal 2030) e criado um grupo de acompanhamento dessa estratégia, no âmbito do programa InCode2030. Relativamente às preocupações éticas, foi tornado público há muito pouco tempo um manifesto, subscrito por académicos e profissionais, onde se defende um compromisso nacional para uma transformação digital centrada no humano.
A sociedade está a mudar a um ritmo frenético, e a IA tem uma responsabilidade imensa na transformação que estamos a viver. Urge aprofundar a discussão sobre o desenvolvimento e a utilização da Inteligência Artificial. Sobre os aspetos técnicos, seguramente, mas também sobre a dimensão ética. É fundamental a participação de todos/as nesse debate necessário. A publicação no mês de maio da Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital, e a posterior discussão que motivou, mostram a importância, atualidade e complexidade do tema para a sociedade e para o nosso futuro coletivo. Preparemos o futuro inventando-o!
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