O cinema científico enquanto ponte entre a imagem, o conhecimento e a realidade

Dimensão analítica: Cultura, Artes e Públicos

Título do artigo: O cinema científico enquanto ponte entre a imagem, o conhecimento e a realidade

Autor: Jacopo Wassermann

Filiação institucional: Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias

E-mail: wass@hotmail.it

Palavras-chave: cinema, ciência, educação.

Na gíria popular, dizer que algo “se parece com um filme” é sinónimo de sonho, irreal, espetáculo, ou seja, aponta para uma suspensão das regras habituais que regem a realidade. Esta conotação sugere duas interpretações opostas e inconciliáveis: 1) o meio cinematográfico enquanto repositório da imaginação humana, da fantasia e do irracional; 2) a ciência enquanto guardiã do conhecimento estável, confiável e objetivo.

A captura mecanizada de imagens através do processo fotográfico surgiu ao longo do século XIX para responder a dilemas científicos ligados à imperfeição da visão humana. A gravação de fenómenos astronómicos e fisiológicos atuava uma decomposição dos movimentos e ritmos da natureza, permitindo posteriormente a sua perceção e análise [1].

No entanto, o ideal do cinema enquanto ferramenta racional ao serviço da ciência desmoronou progressivamente entre o final do século XIX e o princípio do século XX. Por um lado, o desenvolvimento e a sucessiva exploração comercial de aparelhos de projeção e visionamento possibilitaram o estabelecimento de uma indústria lucrativa, popularizando a função de entretenimento da imagem em movimento. Por outro, a consciência crescente do potencial retórico dos mass media intensificou a sua aplicação em estratégias de propaganda, tendo o efeito de desenvolver os seus recursos linguísticos, afastando-o, ao mesmo tempo, da missão de aceder imparcialmente à realidade.

Mais, teóricos como Gunning [2] e Mulvey [3] afirmam que existe um resíduo irracional necessariamente implicado na relação humana com o aparelho cinematográfico e as suas imagens: a estranheza suscitada por um registo da realidade, que ultrapassa as faculdades do ser humano. Este “vício de forma” torna impossível uma abordagem neutra à imagem cinematográfica, seja do ponto de vista da criação, seja da recepção.

Entre as décadas de 60 e 70 do século XX, em correspondência com o notável crescimento do interesse da filosofia pós-moderna nas ciências, as modalidades e finalidades do ato de filmar foram radicalmente questionadas [4]. Entendeu-se que a escolha de planos e sua sucessiva montagem constituíam um olhar e discurso parciais, tornando-se necessário adotar medidas para reduzir o grau de subjetividade do investigador-cineasta.

Contudo, não se trata de uma problemática exclusiva das ciências sociais. Considere-se a imagem do buraco negro situado na galáxia Messier 87, a primeira vez que se conseguiu uma prova imagética da existência de um buraco negro. Esta imagem foi produzida graças aos esforços da Event Horizon Telescope, uma rede global de observadores astronómicos. No entanto, o resultado não reflete um ponto de vista único e claramente localizado, sendo antes um cálculo efetuado a partir de dados registados por cada telescópio pertencente à rede [5]. Este facto obriga-nos a reconsiderar noções simplistas de acesso imediato à realidade.

O conhecimento e a compreensão correspondem a modelos epistémicos diferentes [6]. O primeiro estrutura-se e exprime-se através de formas linguísticas próprias da lógica, enquanto o segundo seria muito mais próximo de modelos intuitivos, pictóricos e imagéticos. Por conseguinte, a ciência é fixada e divulgada através da palavra (oral ou escrita), mas ilustrada através de recursos visuais (fotografias, gráficos, esquemas, etc.).

Uma vez que o nosso acesso à informação é cada vez mais mediado pelo regime visual e que as imagens são caraterizadas por uma ambiguidade epistémica superior à das palavras, torna-se fundamental estimular uma reflexão sobre a relação entre imagem, conhecimento e realidade, já a partir do ensino básico.

O Gabinete do Secretário de Estado da Cultura e o Gabinete do Secretário de Estado do Ensino Básico e Secundário são responsáveis pelo Plano Nacional de Cinema, que visa à difusão de competências de literacia cinematográfica para os alunos do ensino obrigatório. No guia disponibilizado pela Direção-Geral da Educação, é possível examinar a lista de filmes de referência para cada ano de implementação do Plano. Na lista mais recente, referente ao ano escolar 2019-2020 [7], encontram-se alguns filmes que podem ser considerados “científicos”: Nanook, O Esquimó (Robert Flaherty, 1922), Zoo (Bert Hanstra, 1962) e O Pão (Manoel de Oliveira, 1963). Estas obras encontram-se distribuídas, de forma irregular, ao longo dos três primeiros ciclos, sendo que as referências para o ensino secundário não apresentam qualquer filme científico. Adicionalmente, os filmes suprarreferidos apresentam desafios epistémicos consideráveis: por exemplo, é notório que o realizador de Nanook, O Esquimó tenha encenado numerosos planos que foram apresentados enquanto registos documentais na altura da estreia.

O cinema é uma ferramenta única pela sua junção de racionalidade e fascínio, conhecimento e fantasia. As suas obras podem proporcionar uma fuga à realidade, ou, então, encorajar-nos a considerá-la mais de perto. Reforçar a consciência da existência destas duas correntes paralelas, dos seus pontos de contacto e divergência, poderá ajudar as novas gerações a decifrar o mundo imagético que as rodeia, permitindo-lhes uma relação mais confiante e produtiva com os meios de comunicação contemporâneos e abrindo um caminho de compreensão mais profunda rumo à obtenção de um saber autenticamente científico.

Notas:

[1] Tosi, V. (2005). Cinema before cinema. The origins of scientific cinematography. London: British Universities Film & Video Council Publication.

[2] Gunning, T. (2004). Re-newing old technologies: astonishment, second nature, and the uncanny in technology from the previous turn-of-the-century, In D. Thorburn & H. Jenkins (Org.), Rethinking media change: the aesthetics of transition, London: The MIT Press.

[3] Mulvey, L. (2006). Death 24x a second. Stillness and the moving image. London: Reaktion Books.

[4] Davies, Charlotte Aull (1999). Reflexive ethnography. A guide to researching selves and others. New York and London: Routledge.

[5] Devlin, H. (2019). Black hole picture captured for first time in space breakthrough. The Guardian. [Consult. 30 ago. 2020]. Disponível em https://www.theguardian.com/science/2019/apr/10/black-hole-picture-captured-for-first-time-in-space-breakthrough.

[6] Meynell, L. (2020). Getting the picture: towards a new account of scientific understanding, In M. Ivanova & S. French (Org.), The aesthetics of science. Beauty, imagination and understanding, New York and London: Routledge.

[7] Direção-Geral da Educação. Plano Nacional de Cinema.  Disponível em https://www.dge.mec.pt/sites/default/files/PNC/pnc_2019_20_lista_geral_filmes_recomendados.pdf

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