A desvalorização social e política do desporto

Dimensão analítica: Saúde e Condições e Estilos de Vida

Título do artigo: A desvalorização social e política do desporto

Autor: Vítor Rosa

Filiação institucional: Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias

E-mail: vitor.rosa@ulusofona.pt

Palavras-chave: Desporto, Alta competição, Olimpismo.

Colocando-se numa posição de baloiço socrático (pensamos na comédia grega de Aristophanes, Les Nués, onde se representa a personagem de Sócrates num “cesto” (baloiço) suspenso no ar, e que tem a pretensão de se colocar acima do ponto de vista do comum dos mortais), o barão Pierre de Coubertin (1863-1937), considerado o pai do olimpismo moderno, apresenta uma definição de desporto, persuadido que estava da excelência da educação corporal britânica e que militava pela introdução dos desportos ingleses nos estabelecimentos escolares franceses. Para si, o desporto “é o culto voluntário e habitual do exercício muscular intensivo, incitado pelo desejo do progresso e não temendo o risco” (Coubertin citado em Rioux, 1972, p. 2) [1]. Examinando o ponto de vista complexo, mas evolutivo, do renovador dos JO Modernos, que deixou milhares de páginas escritas sobre o desporto, este conceito tem em consideração cinco aspetos: iniciativa, perseverança, intensidade, aperfeiçoamento e assunção do risco.

Assumindo como “slogan” ou palavras de ordem para o Comité Olímpico Internacional (CIO), citius, altius, fortius (mais rápido, mais alto, mais forte), para o animador da chama olímpica e senhor dos anéis (Coubertin) são cinco aspetos “essenciais e fundamentais” e decorrem de três consequências. Primeira consequência: o desporto não é natural ao homem, isto é, ele está em contradição com a nomos (lei) animal do “menor esforço”. Não é suficiente fornecer-lhe as facilidades materiais. É preciso paixão e cálculo (estratégia). Segunda consequência: o caráter desportivo é suscetível de se sobrepor a todo o exercício muscular. A técnica desportiva abrange todo o domínio do exercício físico, desportivamente praticado (ginástica, esgrima, equitação, futebol, etc.). Terceira consequência: o desporto apela ao sangue-frio e à observação, isto é, faz apelo à psicologia e à fisiologia. Ele é um agente de aperfeiçoamento moral e social. A seus olhos, o valor moral do desporto é exemplar (escola de vontade, fortificador das almas e representação da versão moderna do estoicismo).

Afinando as suas análises, para o eclético aristocrata Coubertin, o desporto comporta três fases sucessivas. Toda a prática desportiva exige uma determinada ginástica que adapta o corpo aos movimentos necessários e cria o hábito muscular desejável. Depois, ele torna-se uma ciência: o desporto experimentado permite adquirir conhecimentos. Por fim, o desporto pode ser uma “arte” (produtor e proporcionador), pelo qual o Homem se liberta de si mesmo e liberta o seu semelhante das piores coisas, das menos dignas, das mais pesadas. Uma arte que varia segundo o grau de aperfeiçoamento daquele que o pratica. Uma arte com um lugar à parte de todas as outras. O desporto produz a beleza, pois o atleta é a escultura viva. Ele é a ocasião da beleza dos edifícios que o consagram, os espetáculos e as festas que ele provoca.

Nos propósitos gerais de Prouteau (1948, p.207) [2], o “desporto é o único meio de conservar no homem as qualidades do homem primitivo. Ele assegura a passagem da idade da pedra para a idade da pedra futura, da pré-história à pós-história”. As artes são sempre um bom barómetro da importância de um fenómeno no coração da civilização. Assim sendo, o desporto é um meio de expressão artística. Para além da inspiração, o desporto incute o gosto pela força, mas pela força cultivada, trabalhada, controlada e honestamente utilizada.

Na sua mensagem radiofónica (04 de agosto de 1935), pela ocasião dos JO em Berlim, em 1936, Pierre de Coubertin associa desporto e religião, enquanto fronteira entre o sagrado e o profano [3]. As críticas ao criador dos cinco anéis olímpicos vão-se fazer sentir. O humanismo (regeneração dos indivíduos, sobretudo dos franceses) e o universo moral proposto na sua obra Pédagogie sportive (1922) “falhou” [4]. A necessidade de afirmação do eu, pela via competitiva, é dominante da cultura ocidental. O desporto favorece esta afirmação, no entanto, os meios para a satisfazer são de acesso cada vez mais difícil.

O desporto não é apenas portador de um ideal ético e moral. Ele é suscetível de produzir os melhores e os piores efeitos, representando um meio de cultura ou, pelo contrário, um retorno aos instintos de agressividade e ao chauvinismo. Ele pode ser o “ópio do povo”, num universo de evasão onírico.

Concentramo-nos sobre as proezas, os resultados sensacionais ou catastróficos, os recordes inacessíveis ou que são batidos, no seu humanismo, na sua mensagem de amor, na sua missão pacificadora, mas fala-se pouco sobre as suas imperfeições (excessos, lesões, violência – física, institucional e simbólica –, corrupção, dopagem, discriminação, exclusão, morte, etc.), com medo, talvez, de quebrar o “belo sonho”.

A pandemia Covid-19 veio dar um duro golpe no desporto a nível mundial. Muitas das competições desportivas foram suspensas ou, simplesmente, canceladas, incluindo os maiores eventos desportivos agendados para 2020: Jogos Olímpicos e Paralímpicos de Tóquio 2020 ou o Euro 2020. Portugal sofreu, igualmente, um impacto negativo [5]. No caso português, como refere José Manuel Constantino (Público, 13/06/2020), o desporto nacional nem sequer foi contemplado no Programa de Estabilização Económica e Social. Isso é, de facto, revelador do escasso “peso político que o desporto tem junto de outros sectores da governação”. O desporto é, claramente, maltratado. É um sinal claro da desvalorização social e política do desporto.

Notas:

[1] Rioux, G. (dir.) (1972). Pierre de Coubertin : Pédagogie sportive : histoire des exercices sportifs technique des exercices sportifs action morale et sociale des exercices sportifs. Paris : Librairie J. Vrin, p. 2.

[2] Prouteau, G. (1948). Anthologie des textes sportifs de la littérature. Paris : Editions Défense de la France.

[3] INA. Disponível em (consultado em 07/06/2019): https://www.ina.fr/audio/PH106001133

[4] Coubertin, P. (1922). Pédagogie sportive. Paris : Les éditions les Crèss et Cie.

[5] Moura, D., Dias, A., Torres, J., Farinha, P. Ribeiro, B., & Cordeiro, C. (2020). Pandemia COVID-19 e Impacto no Desporto. Revista Medicina Desportiva informa, 11(3), 26-33. URL: https://doi.org/10.23911/pandemia_2020_05.

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