Dimensão analítica: Educação e Ciência
Título do artigo: Racismo, raças e educação – Parte II
Autora: Patrícia Ferraz de Matos
Filiação institucional: Instituto de Ciências Sociais – Universidade de Lisboa (ICS-UL)
E-mail: patricia_matos@ics.ulisboa.pt
Palavras-chave: antropologia, racismo, raças, educação.
Entrevista conduzida por João Aguiar, Instituto de Sociologia da Universidade do Porto.
Parte 2
2- Subsistem marcas dessa associação colonialismo/racismo nas nossas sociedades? (continuação)
As queixas das pessoas discriminadas traduzem-se sobretudo no tratamento diferenciado no acesso ao emprego, à habitação, mas também a locais associados ao lazer como restaurantes, lojas ou centro comerciais, bares ou a própria praia. E também na segregação promovida em alguns locais, como a existência de turmas só com alunos ciganos, o afastamento de famílias ciganas pelas próprias autarquias e os bairros sociais habitados sobretudo por imigrantes de países africanos. Muitas vezes, estas pessoas não são discriminadas explicitamente, ou seja, têm um emprego, contribuem para a economia, mas são invisíveis socialmente; não frequentam os mesmos espaços, ou não os frequentam nas mesmas horas, e estão sub-representadas no espectro político e cultural. O racismo pode estar ainda associado à classe social (os indivíduos que sofrem de discriminação estão sobretudo associados a periferias ou locais suburbanos e vulneráveis) e a uma herança histórica e cultural, denunciadora de pobreza, de práticas culturais diferentes, às quais estão associados muitos preconceitos.
Além da legislação condenar o racismo e a discriminação, o Artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa refere que não se deve discriminar um indivíduo em função da sua raça, ascendência ou religião. Ou seja, o racismo é inconstitucional e um crime por lei. Mas nem sempre parece ser devidamente criminalizado. Além disso, não basta ser criminalizado na lei e na Constituição, como já o é, mas por todos e todas e em todos os lugares, desde casa à escola, passando pelas instituições, empresas, hospitais, cadeias e outros locais. É importante investir no campo das relações quotidianas, porque é sobretudo aí, no meio informal, que o racismo é mais disseminado, transversal e inter-geracional. É necessário continuar a sensibilizar as pessoas, desde a escola e outros locais de formação, que podem ser a própria casa e a família, promovendo uma educação anti-racista.
3- Qual o contributo da Educação, do sistema educativo em geral, para o fomento ou a diluição do racismo?
É sobretudo através de uma educação que promova o ensino generalizado de ideias anti-racistas e inclusivas que se pode combater o racismo. É comum referir-se o papel importante que as universidades têm nesse campo, ao abordar a história de África, da escravatura e do ensino acerca de outras culturas. Mas estes assuntos deveriam ser logo introduzidos a partir do ensino básico e secundário e até infantil. No caso do tráfico de escravos, por exemplo, Portugal esteve envolvido na deslocação de cerca de seis milhões de pessoas, mas também este assunto não tem sido tratado abertamente ou retratado nos manuais escolares e museus. Soube recentemente que um dos livros que circula por alguns jardins de infância do ensino público em Portugal refere a dada altura que as pessoas se dividem em raças diferentes, a partir de um conjunto de figuras cuja cor da pele é distinta. Continua a ser, assim, por exemplo, que o público pré-escolar tem contacto com estas matérias e estas lhes são apresentadas pelos(as) educadores(as), educadores(as) cuja formação também não inclui estas temáticas. Por essa razão é necessário um esforço transversal – político, educativo e moral – que não se traduza no receio em abordar estas questões desde a infância e sobretudo nos momentos de integração à socialização. As crianças não nascem racistas, mas acabam por ser educadas num sistema racista e apenas uma educação explicitamente anti-racista poderá contribuir para formar cidadãos mais instruídos e capazes de lidar com as diferenças. As diferenças existem e são perceptíveis em todo o lado; contudo, não existe explicitamente uma educação para a valorização da diferença e, portanto, o que acaba por acontecer é o seu repúdio. As críticas recentes relativas à disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, obrigatória no sistema de ensino português, e a polémica que tem gerado pelo incómodo em abordar determinadas matérias, que levaram alguns pais a solicitar que fosse facultativa, são disso exemplo. Poderia haver, por exemplo, uma maior articulação entre professores e formadores de todas as áreas científicas (ciências naturais, ciências sociais e artes) e com conhecimentos de áreas geográficas diversas, procurando incorporar as distintas contribuições históricas, científicas, políticas e artísticas, de diferentes grupos humanos, não só para Portugal, como para toda a humanidade. Num mundo cada vez mais global, é importante promover uma educação mais plural que contribua para o esbatimento de preconceitos e não para os acentuar.
Têm-se registado no país, contudo, algumas iniciativas positivas como: a aprovação de um memorial de homenagem às pessoas escravizadas em Lisboa, proposto pela Associação de Afrodescendentes (Djass); um abaixo-assinado contra um museu com o nome Museu das Descobertas (publicado no jornal Expresso a 12 de Abril de 2018); e manifestações anti-racistas (a 6 de Junho de 2020), em várias cidades, entre outros exemplos avulsos. Mas não existe uma estrutura (política ou não) que organize e sustente a concretização e a efectividade destas iniciativas. Por outro lado, várias associações e alguns movimentos sociais têm tido um papel importante, mas é fundamental avançar-se ao nível de políticas públicas, da realização de censos (saber quem é quem no país), conseguir identificar a população, o mais próximo possível da realidade, para averiguar e poder demonstrar como ao longo do tempo a população se diferencia em termos de escolaridade, acesso ao emprego, à habitação, a cuidados de saúde e à cultura – são estes, de facto, os aspectos fracturantes e essenciais na sociedade e são estes que devem ser primeiramente tomados em consideração numa análise social. Se queremos promover uma sociedade mais justa, com a possibilidade de igualdade de oportunidades para todos, é necessário, por vezes, promover a discriminação positiva de alguns grupos. E não são apenas os negros ou os ciganos, são também as mulheres, as pessoas transgénero ou os refugiados de vários países.
Há um longo caminho a percorrer. O ponto de partida é perceber que em Portugal o racismo é um problema estrutural ou sistémico. Mas está de tal forma inculcado que muitas vezes não nos apercebemos como a sociedade funciona e se reproduz. É importante ensinar que há na humanidade, evidentemente, variação biológica, genética, social, cultural e linguística; essas variações são extraordinárias e até necessárias para a sobrevivência da espécie humana, mas não são raciais, uma vez que elas não contribuem para dividir os indivíduos entre raças. A pandemia COVID-19 veio acentuar as fragilidades da população mais desfavorecida da sociedade portuguesa, trazendo novos desafios também para a educação de crianças e jovens. Em alguns locais, as tensões já existentes têm-se agudizado, o que se tem reflectido na ocorrência de episódios que exemplificam o racismo explícito. Por outro lado, a população está cada vez mais atenta a estes episódios e pronta a denunciar os mesmos – não só nas redes sociais, mas também na comunicação social. É um bom sinal. O racismo combate-se com um esforço colectivo.
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