Racismo, raças e educação – Parte I

Dimensão analítica: Educação e Ciência

Título do artigo: Racismo, raças e educação – Parte I

Autora: Patrícia Ferraz de Matos

Filiação institucional: Instituto de Ciências Sociais – Universidade de Lisboa (ICS-UL)

E-mail: patricia_matos@ics.ulisboa.pt

Palavras-chave: antropologia, racismo, raças.

Entrevista conduzida por João Aguiar, Instituto de Sociologia da Universidade do Porto.

Parte 1

 

1- É possível realizar-se uma comparação (de similitudes e/ou de diferenças) entre manifestações de racismo no colonialismo e na atualidade?

Ao longo do tempo, alguns autores utilizaram a expressão raça para designar povo, mas de um modo geral a expressão remete para uma entidade biológica diferenciável. Trata-se de um termo zoológico, com pertinência nesse domínio, mas não no caso dos humanos. Existe apenas uma raça humana, apesar da variedade fenotípica – termo dado pelos biólogos e antropobiólogos às diferenças físicas. A ideia de raça aplicada aos humanos foi inventada e tem um percurso histórico, mas as descobertas do campo da biologia, sobretudo a partir dos finais dos anos 40 e inícios dos anos 50 vieram desmontá-la. A inventariação de raças nem sempre foi considerada racismo pelos que a defenderam e praticaram. Contudo, essa inventariação foi apropriada para hierarquizar e discriminar pessoas. Além disso, não é uma representação colectiva, já que está sujeita a critérios totalmente subjectivos, tanto de observação como de classificação.

As ideias sobre raça e racismo foram, em parte, incorporadas na política colonial portuguesa, sobretudo porque se tornaram muito úteis ao processo de dominação das populações que estavam sob a administração colonial. E isto porque à maioria dos indivíduos que faziam parte destas populações, estava associado um código de trabalho e um estatuto que articulava directamente com este, isto é, o estatuto de indígena, que lhes vedava o acesso à cidadania. Mas, quando Portugal começa a sofrer pressões internacionais, sobretudo no período pós-Segunda Guerra Mundial, o discurso da política colonial altera-se. Em 1951 as colónias passam a designar-se por províncias ultramarinas e Portugal é dado a ver como um país multi-territorial e multi-racial. Os seus habitantes eram designados por portugueses da metrópole e portugueses das colónias.

No que se refere ao contexto português, durante o período colonial, os estudos de antropologia física realizados, tanto na então metrópole, como nas então colónias, nunca foram conclusivos em encontrar caracteres específicos que fossem denunciadores da existência de raças, ou seja, a raça era um ponto a partir do qual muitas vezes se partia, até pelo seu suposto carácter científico, que justificava o trabalho de quem realizava esses estudos, mas que no final se revelava inconclusivo. Dito de outra forma, apesar de repetido inúmeras vezes, esse exercício acabou por ser infrutífero do ponto de vista científico. Contudo, a articulação entre biologia, eugenia e racismo foi fundamental para estabelecer os propósitos do colonialismo.

2- Subsistem marcas dessa associação colonialismo/racismo nas nossas sociedades?

Hoje em dia estamos num contexto muito diferente e o racismo é crime. Contudo, existem ainda exemplos de discriminação racial na actualidade, manifestados, por exemplo, através de processos de exclusão social ou segregação espacial. Em alguns contextos menos sujeitos a um crivo (científico ou moral), como os jornais, as redes sociais ou na interacção quotidiana, surgem exemplos de quem associe os imigrantes de origem africana e seus descendentes (negros), ou os ciganos, ao desemprego, ou a trabalhos intermitentes, à criminalidade, ao tráfico de droga ou à economia paralela, com a agravante de serem considerados um encargo para o Estado português – é a ideia de que a sua existência no país apenas constitui um custo, com poucos ou nenhuns benefícios. A produção destas generalizações, não sustentadas em dados concretos, leva, contudo, à disseminação de preconceitos e à criação de sentimentos de insegurança face a cidadãos que vivem em Portugal, e alguns desde sempre, e são tratados como imigrantes apenas porque têm (ou sobretudo porque têm) um fenótipo diferente. Assim, registam-se ainda alguns exemplos de discriminação racial, mas esta passou a ser denunciada e de forma mais generalizada. Porém, embora seja um crime punido por lei, continua a não ser suficientemente criminalizada.

Em geral, muitos portugueses consideram que os seus concidadãos não são racistas, mas sim os povos do norte da Europa. A somar a isso, a ideia veiculada a partir dos anos 50, durante o Estado Novo, de que os portugueses se comportaram de modo diferente durante a colonização e que não foram tão racistas como os outros povos colonizadores não ajuda. Este mito, aliás, continua a propagar-se, mas é desmontado com alguma frequência. Ou seja, o fantasma do racismo, que parece estar adormecido, vem de vez em quando à tona. Recentemente, após o assassinato do afro-americano George Floyd por um polícia branco em Minneapolis (a 25 de Maio de 2020), o movimento Black Lives Matter, que surgiu em 2013 após o assassinato de um afro-americano nos EUA, ganhou um novo fôlego. Este movimento, que agora também ganhou expressão em outros países, incluiu o derrube de estátuas de várias figuras ligadas ao colonialismo e ao tráfico de escravos. Trata-se de um movimento global, que acabou por ter réplicas também em Portugal. Posteriormente, o assassinato do actor português Bruno Candé (a 25 de Julho de 2020) veio agudizar a revolta das comunidades afro-descendentes no país. Contudo, várias pessoas continuam a negar a existência de racismo – basta consultar vários artigos de jornal e respectivos comentários dos leitores a esses e outros artigos, ou ler frequentemente os comentários que circulam em redes sociais. Isso aconteceu, por exemplo, a propósito de uma publicação que coloquei no meu mural do Facebook, a propósito do assassinato de George Floyd. Algumas pessoas comentaram que não se tratava de racismo, mas apenas de violência policial, e que Portugal era diferente no que ao racismo dizia respeito. Por outro lado, em outras ocasiões não se regista racismo, mas um certo paternalismo que vem ainda do tempo colonial. Curiosamente, nesse tempo os negros eram referidos amiúde como sendo portugueses – portugueses das colónias ou portugueses de além-mar – e agora que estão em Portugal são vistos como imigrantes, mesmo que tenham nascido em Portugal. A este respeito, a lei da nacionalidade (para muitos afro-descendentes das ex-colónias portuguesas) também não fez ainda justiça…

Por outro lado, alguns episódios decorridos recentemente em Portugal, que dão conta da possibilidade de estar a organizar-se no país um ou mais movimentos de extrema-direita, racistas e xenófobos, não nos deixam descansados. A 10 de Agosto ocorreu uma manifestação do movimento que se intitula como Resistência Nacional, de inspiração no Ku Klux Klan, em frente à sede da SOS Racismo em Lisboa. Estes movimentos, geralmente ligados à extrema-direita, associam os grupos minoritários à violência e à insegurança (roubos, assaltos), à economia paralela, ao narcotráfico, a custos sociais do Estado, e têm conexões com grupos similares de outros países europeus, o que reforça a sua perigosidade. Com a circulação rápida de notícias, os acontecimentos tornam-se celeremente conhecidos, o que é bom. Mas a rapidez de reacção relativamente a esses episódios, do campo político e jurídico, deveria ser também pronta e decisiva.

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