Dimensão analítica: Cultura, Artes e Públicos
Título do artigo: Políticas culturais europeias sob a batuta do neoliberalismo: uma rota de empobrecimento
Autor: João Teixeira Lopes
Filiação institucional: Instituto de Sociologia da Universidade do Porto
E-mail: jmteixeiralopes@gmail.com
Palavras-chave: políticas culturais, Portugal, Europa.
Se há um traço comum às políticas culturais europeias, ele prende-se com a viragem neoliberal dos anos 70/80 do século (Alexander 2019; 2018a; 2018b). Mau grado as singularidades nacionais e as relativas margens de resistência, negociação, tradução e adaptação face às orientações transnacionais, existe um claro ascenso dos valores extrínsecos e instrumentais da cultura. Esta constatação leva-nos a encarar com prudências as concomitantes tendências (aparentemente progressistas) de institucionalização da cultura a partir do modelo do estado Social, de transformação da esfera da alta cultura no sentido da des-hierarquização ou do novo perfil eclético e omnívoro de práticas culturais das classes médias urbanas mais capitalizadas (Peterson e Anand, 2002). Estas emergências, apenas na aparência contraditórias, fazem parte de um processo mais amplo de redução da subvenção estatal e dos apoios públicos à criação e difusão da cultura, depois dos ímpetos democratizadores dos anos 60. Mesmo os programas dirigidos à formação e ampliação de públicos, no seu ideário reclamando-se da democracia cultural (Lopes, 2007), ecoam os propósitos utilitaristas. Parece haver muito pouca apetência pela visão romântica dos mundos da arte e da cultura em que estas surgem como fins em si mesmos, práticas “puras”, desligadas da necessidade ou função.
A vasta operação de culturalização da economia, de artistização do capitalismo (Lopes, 2013) e de inflação do estético no quotidiano assenta que nem uma luva na livre circulação de mercadorias, dentro da utopia liberal de um mercado sem restrições exógenas, em sentido inverso ao contrato social dos “trinta gloriosos anos” alicerçado na desmercadorização de fatias importantes da produção de bens, incluindo os simbólicos. A contracultura é absorvida no novo espírito do capitalismo (Bolstanski e Chiapello, 2009) e perde a negatividade da tensão crítica, Numa era de glorificação da livre expressão, do individualismo relacional, criativo e identitário, um exército gigantesco de trabalhadores artísticos encontra um fundamento ético para a sua vida.
No plano da regulação económica verifica-se uma absorção ativa e por vezes consentida do campo cultural subsidiado nas indústrias criativas e na economia criativa e a identificação com os proeminentes discursos de inovação, placemaking, criatividade, soft power e competitividade global, a par de uma cada vez mais limitada intervenção estatal nos campos do emprego cultural com um enfoque no sujeito criativo e empreendedor dentro do mercado de trabalho flexível.
No plano social, a cultura e as artes servem os mais variados fins: ilustração cívica, promoção da literacia, contributo para a saúde, o bem-estar e a autoestima, capacitação laboral, integração racial, ocupação dos tempos livres juvenis, animação do turismo e do comércio, inclusão dos territórios, escolas e classes sociais “vulneráveis”…
Nesta doxa raramente se questiona se um festival “multicultural” é apenas um instrumento de uma estratégia de marketing urbano dentro da cidade-empresa e muito menos uma real ocasião de conhecimento e interação das diferenças ou se um dado programa de animação cultural esvazia as potencialidades críticas e políticas dos seus destinatários, vistos antes de mais como “clientes” que usufruem de um “serviço” que os poderá domesticar e tranquilizar numa idílica “coesão social”.
Importaria analisar os efeitos de um empobrecimento cultural resultante da unificação deste colete de forças. Que lugar para a experimentação, a heterodoxia e a irrupção do novo anti sistémico quando a cultura e a arte são os invólucros mais poderosos da informação, da digitalização e da “nova” economia?
Referências:
Alexander, V. D. (2018a). Enterprise Culture and the Arts: Neoliberal Values and British Art Institutions. In Alexander, V.D., Hägg, S., Häyrynen, S. & Sevänen, E. (Eds.). Art and the Challenge of Markets: National Cultural Politics and the Challenges of Marketization and Globalization. Volume 1. (pp. 67-93). Palgrave.
Alexander, V. D. (2018b). Heteronomy in the Arts Field: State Funding and British Arts Organizations. British Journal of Sociology, 69(1), 23-43.
Alexander, V. D. (2019). Cultural Policy Effects on the Marketing Orientation in London Art Museums. In Ekström, K. M. (ed.), The Museum and Art Business: Cultural Institutions and Market Orientation. (pp.81-97). Routledge.
Lopes, J. T. (2007), Da democratização à democracia cultural: uma reflexão sobre políticas culturais e espaço público. Porto: Profedições.
Lopes, J. T. (2013). Capitalismo artístico: quando a arte e a cultura ocupam o centro. Simbiótica. Revista Eletrônica, 1(3). Recuperado de https://periodicos.ufes.br/simbiotica/article/view/5490
Peterson, R.A. e Anand, D, N. (2002). How chaotic careers create orderly fields. In Maury A. P., Michael A. and N. Anand (Editors). Creative careers. New York: Oxford University Press, pp.257-289.
Boltanski, L. e Chiapello, È. (2009). El nuevo espíritu del capitalismo. Madrid: Akal.
.
.