Desigualdade em Portugal: significado e perspectivas

Dimensão analítica: Cidadania, Desigualdades e Participação Social

Título do artigo: Desigualdade em Portugal: significado e perspectivas

Autor: Nuno Ornelas Martins

Filiação institucional: Universidade Católica Portuguesa, Católica Porto Business School

E-mail: nmartins@porto.ucp.pt

Palavras-chave: Desigualdade, Liberdade, Sistemas Produtivos.

A desigualdade é uma questão central da organização da sociedade. Como Amartya Sen já referia no seu famoso texto de 1979, “Equality of What?” [1], a questão fundamental não é se somos contra ou a favor da igualdade, mas, essencialmente, que tipo de igualdade pressupomos ao avançar uma dada concepção da sociedade. Mesmo aqueles que tendem a argumentar contra políticas redistributivas do rendimento e da riqueza fazem-no porque entendem que essas políticas chocam com a liberdade para manter e utilizar a riqueza possuída, liberdade essa que deve ser garantida, igualmente, a todos perante a lei. Não é tanto um caso de ser contra a igualdade, mas antes um caso de entender que a igualdade deve existir no plano da liberdade perante a lei, não no plano da distribuição de rendimento ou riqueza.

Todavia, a liberdade humana é definida pelos contornos de um quadro normativo que inclui não apenas as disposições legais, mas também as convenções culturais e sociais que se institucionalizam numa realidade concreta. A própria distribuição de rendimento e riqueza depende desse quadro normativo (político, jurídico, social e cultural), que regula o sistema económico através do qual se dá a produção e distribuição do rendimento e da riqueza, e o modo como este processo interage com a biosfera na qual toda a actividade humana se insere. Toda a realidade social é, aliás, normativa, na medida em que a coordenação da actividade humana pressupõe expectativas acerca de como os outros deverão agir. Essas expectativas, construídas com base em hábitos e costumes, assentam na existência de obrigações no sentido de agir de determinada forma.

Os vários sistemas que sustentam a actividade económica pressupõem, portanto, um quadro normativo de direitos e obrigações (legais, sociais e culturais), no âmbito do qual se reproduzem o trabalho e a natureza, desde cedo vistos como os determinantes últimos do rendimento e da riqueza (de forma mais sistemática, já por William Petty no século XVII e por Richard Cantillon no século XVIII, ainda antes dos Fisiocratas e, mais tarde, Adam Smith, escreverem sobre o assunto nesse mesmo século). Os processos de produção e distribuição de rendimento e riqueza dependem da forma como as liberdades humanas são estruturadas no âmbito desse quadro normativo legal, social e cultural.

Num contexto em que a actividade económica mundial tem-se tornado cada vez mais interligada, as diferenças legais, sociais e culturais entre várias regiões tornam-se determinantes do modo como uma região se integra nas redes globais de produção, e das repercussões que essa integração terá na maior igualdade ou desigualdade nessa região. Em Portugal, durante muito tempo, o sistema produtivo integrou-se na economia europeia e mundial através de sectores que, sendo relativamente intensivos em trabalho, permitiram a manutenção de uma taxa de desemprego relativamente baixa durante as últimas duas décadas do século passado. Nesse caso, a desigualdade de rendimento e riqueza resultava dos salários relativamente baixos praticados nesses sectores (embora a exclusão do próprio mercado de trabalho tenha sido sempre um factor também importante). O facto da população feminina constituir uma parte importante dessa força de trabalho, conjugado com um quadro social e cultural em que as obrigações familiares são assimétricas, contribuiu também para a desigualdade de género nesse contexto.

A evolução do comércio internacional, que trouxe uma maior concorrência para esses sectores em que Portugal se encontrava especializado, num contexto de moeda única europeia que já não permitia utilizar a desvalorização monetária para tornar as exportações mais competitivas, levou a que o país estivesse pouco preparado para a crise financeira global de 2007-8 e, especialmente, para a crise das dívidas soberanas que se seguiu, causada pela especulação financeira em torno da capacidade das economias mais frágeis da zona euro pagarem a sua dívida. Neste contexto, a desigualdade agravou-se (passando também pelo aumento do desemprego), sobretudo quando o orçamento do Estado ficou ainda mais sobrecarregado com o pagamento da dívida (dada a subida das taxas de juro implícitas na dívida entre 2010 e 2011), e com a imposição pela chamada “troika” (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional) da chamada austeridade, associada ao empréstimo obtido.

Essa intervenção externa e o seu enquadramento legal foi acompanhada por um discurso que considerava que os direitos e obrigações negociados no contexto desse empréstimo se sobrepunham aos direitos e obrigações inerentes às relações laborais e prestações sociais preexistentes, contribuindo para o aumento da desigualdade também pela disrupção dessas relações laborais e prestações sociais. Aliás, neste período, se a classe média foi certamente afectada negativamente pelas alterações fiscais, as desigualdades aumentaram também pelo modo como aqueles mais pobres foram afectados pelas alterações das prestações sociais. A quebra das taxas de juro implícitas na dívida pública, iniciada quando o Banco Central Europeu assumiu o seu papel de prestador de última instância em 2012, e mais recentemente o redireccionamento dos fluxos turísticos para Portugal (em grande parte em fuga de um Mediterrâneo onde a instabilidade se tornou crónica por razões ligadas a desigualdades globais), permitiram alguma recuperação económica e a consequente redução do desemprego.

Mas o turismo é, novamente, um sector onde os salários baixos são a regra, e sujeito a flutuações resultantes da situação global, presentemente afectada pela pandemia global iniciada em finais de 2019. A pandemia traz uma realidade em será de esperar um aumento das desigualdades em resultado da forma como são afectados os sectores onde os serviços são prestados de forma presencial por pequenas empresas e todos aqueles que dependem das actividades entretanto suspensas. A maior pressão sobre as famílias tem também maior ou menor impacto na desigualdade de género conforme as convenções sociais no quadro da vida familiar. A disrupção causada é, todavia, acompanhada pelas possibilidades abertas no que diz respeito a formas de organização da produção menos disruptivas da biosfera. As crises trazem sempre possibilidades para alterações estruturais, e, neste caso, o desafio será o de como organizar os sistemas de produção e distribuição, de forma a conseguir a sustentabilidade económica, social e ambiental que já se procura há largas décadas.

Nota:

[1] Reimpresso em Sen, A. (1982), Choice, Welfare and Measurement. Oxford: Blackwell.

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