Dimensão analítica: Educação e Ciência
Título do artigo: Da pseudociência à (anti)política: rejeição da evidência disponível e criação de um movimento sociopolítico
Autor: João Aguiar
Filiação institucional: Instituto de Sociologia da Universidade do Porto
E-mail: jaguiar@letras.up.pt
Palavras-chave: pseudociência, ciência, movimento sociopolítico.
Com a pandemia de Covid-19 têm surgido uma série de discussões com repercussão no espaço público. Na interface das discussões entre a ciência, as políticas públicas de saúde e a política em geral, a pandemia de covid-19 irrompeu como um evento passível de trazer à tona – e de exponenciar – contradições e processos pretéritos. Um deles é inquestionavelmente a relação da sociedade civil com a ciência, mais particularmente com as ciências biomédicas.
Em termos de considerações estruturais, afigura-se como notável o facto de, no espaço de um ano, a comunidade científica ter sido capaz de sequenciar o genoma do vírus SARS-CoV-2, desenvolver vacinas com elevados níveis de eficácia [1] e compreender processos estruturantes da etiologia, da fisiopatologia e da apresentação clínica da doença Covid-19.
Todavia, em movimento contracorrente, a percentagem de parcelas da população portuguesa que assume em inquéritos não vir a tomar qualquer vacina contra a doença [2], que consideram desprezável o impacto da doença sobre os sistemas de saúde ou que contestam as diretivas das agências públicas de saúde é considerável. Esta dinâmica tem culminado em manifestações públicas e políticas de um proto-movimento social [3]. Com paragens gerais e/ou globais da atividade económica, repercutem consequências socioeconómicas relativas a falências, desemprego e perdas de rendimento. Todavia, conforme literatura relativa à pandemia de gripe espanhola de 1918-20 demonstrou [4], os custos económicos relativos à não adoção ou ao relaxamento de restrições à circulação de pessoas no espaço público superam os custos de medidas restritivas. Isto sem mencionar o impacto sobre os sistemas de saúde.
Do ponto de vista da perceção pública da ciência, importa relevar a existência de uma forte componente refratária ao conhecimento científico que tem levado a uma translação em termos políticos, algo inédito à data. Por outras palavras, se antes da pandemia de Covid-19 os movimentos alinhados com a pseudociência já vinham adquirindo notoriedade, o facto é que os recentes acontecimentos aparentam trazer temáticas associadas à pseudociência para o centro do debate político. E com influência política.
Com efeito, importa compreender algumas das particularidades inscritas neste movimento sociopolítico. Numa primeira fase, incluindo em Portugal, surgiram boatos de que o vírus SARS-CoV-2 teria uma origem laboratorial, estando a ser utilizado como uma arma biológica por parte do Estado chinês. Do ponto de vista científico, a origem natural do vírus foi desde muito cedo compreendida [5]. Esta dinâmica assumiu repercussões nas redes sociais, mas não existem registos de manifestações públicas sobre este assunto.
No caso português em específico, a escalada de movimentos “pela verdade” (Médicos pela verdade; Jornalistas pela verdade) regista-se em múltiplas plataformas: nas redes sociais, numa difusão sem precedentes; na ligação a manifestações políticas [6]; no impacto mediático [7]; em tomadas de posição de opinion makers tolerantes com a sua atuação [8]; na ligação a grupos políticos de extrema-direita [3] [9].
Todas estas dimensões apontam para uma penetração capilar e marcante no espaço público português das temáticas, de agrupamentos e de personalidades associadas à pseudociência. Com a pandemia de Covid-19, a repercussão da pseudociência notabiliza-se já no campo propriamente político, sendo um dos vetores alimentadores do populismo. Parece ter-se desenvolvido uma plataforma heterogénea conectando perceções individuais sobre uma doença com a contestação às evidências científicas e às instruções de regulação de políticas públicas emanadas da comunidade científica e das instituições de saúde pública.
No exato momento em que a ciência consegue forjar armas terapêuticas testadas e comprovadas em cerca de uma centena de milhar de casos (vd. Participantes nos ensaios clínicos das vacinas da Pfizer, Moderna e AstraZeneca); e nesse mesmo exato momento que a ciência consegue validar comportamentos que salvaguardem a saúde pública (máscaras, distanciamento social, desinfeção das mãos e das superfícies), o agregado de movimentos e de personalidades dando voz a posições contra-científicas parece indicar que nas profundezas das relações sociais quotidianas prevalecem graus de iliteracia científica. A esta soma-se uma visão de que o trabalho científico se regeria por conspirações subterrâneas ao mando de uma elite obscura e indefinida. Desse modo, a erosão da confiança no método e no trabalho científico – que é sempre complexo, multidimensional e avesso a respostas simplistas e imediatas – não deixará de acarretar consequências sociais marcantes para o futuro.
Três possíveis vetores de análise sociológica a considerar podem passar pela análise: a) do desfasamento entre a complexificação do conhecimento científico e a iliteracia científica, com particular enfâse na avaliação de eventual um falhanço dos processos de ensino e aprendizagem das ciências; b) da hegemonia cultural pós-modernista da produção incessante de imagens, contraditória com os processos de racionalização científica de compreensão de multiníveis da realidade; c) do caráter coletivo e relativamente diluído do papel de cada investigador para a produção científica global, face ao papel de celebridade individual que algumas das personalidades que lideram vertentes da pseudociência assumem.
As mutações na relação entre segmentos da sociedade civil e a comunidade científica constituem um objeto de estudo que convoca a atenção do olhar sociológico.
Notas
[1] Safety and Efficacy of the BNT162b2 mRNA Covid-19 Vaccine (2020). Fernando P. Polack et al. NEJM https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMoa2034577
[2] Covid-19. Mais de um terço dos portugueses não vai vacinar-se. Expresso 12.12.2020 https://expresso.pt/sociedade/2020-12-12-Covid-19.-Mais-de-um-terco-dos-portugueses-nao-vai-vacinar-se
[3] Germany coronavirus: Hundreds arrested in German ‘anti-corona’ protests. BBC, 30.08.2020 https://www.bbc.com/news/world-europe-53959552
Trafalgar Square protest: Conspiracy theorists clash with police at anti-lockdown demonstration. Independent, 19.09.2020 https://www.independent.co.uk/news/uk/home-news/trafalgar-square-protest-coronavirus-lockdown-5g-conspiracy-qanon-vaccine-b499619.html
[4] Pandemic Shutdowns Actually Helped Economic Growth in 1918 Flu. Bloomberg https://www.independent.co.uk/news/uk/home-news/trafalgar-square-pro*test-coronavirus-lockdown-5g-conspiracy-qanon-vaccine-b499619.html
[5] The proximal origin of SARS-CoV-2. Nature Medicine. https://www.nature.com/articles/s41591-020-0820-9
[6] Manifestações contra uso obrigatório de máscara. RTP. https://www.rtp.pt/noticias/pais/manifestacoes-contra-uso-obrigatorio-de-mascara_v1269818
Anti-maskers explain themselves. Vox. https://www.vox.com/the-goods/2020/8/7/21357400/anti-mask-protest-rallies-donald-trump-covid-19
Manifestação “Unidos pela liberdade, pela verdade de todos”. TVI24. 24.10.2020 https://tvi24.iol.pt/fotos/sociedade/manifestacao-unidos-pela-liberdade-pela-verdade-de-todos/5f9479d90cf28e704d91fc00
[7] O grupo polémico que contesta os perigos da Covid-19. TVI. 12.11.2020 https://tvi24.iol.pt/videos/sociedade/o-grupo-polemico-que-contesta-os-perigos-da-covid-19/5fad9d950cf203abc5b0c31e
[8] A Ordem dos Médicos é para cumprir, ouviram? Alberto Gonçalves. 24.10.2020 https://observador.pt/programas/ideias-feitas/a-ordem-dos-medicos-e-para-cumprir-ouviram/
[9] Quem é o rapaz que, aos 21 anos, fechou a avenida da Liberdade. Expresso 14.11.2020 https://expresso.pt/politica/2020-11-14-Quem-e-o-rapaz-que-aos-21-anos-fechou-a-avenida-da-Liberdade
.
.