A obsessão da publicação científica na atualidade

Dimensão analítica: Educação e Ciência

Título do artigo: A obsessão da publicação científica na atualidade

Autor: Marinho Lopes

Filiação institucional: Universidade de Cardiff

E-mail: M.Lopes@exeter.ac.uk

Palavras-chave: ciência, pseudociência, cultura científica.

Entrevista conduzida por João Aguiar, Instituto de Sociologia da Universidade do Porto.

 

Enquadramento: O sistema científico de que fala num artigo (O que está mal com o sistema científico? [1]) tem valorizado uma visão de produção incessante de artigos, citações, etc. Neste mesmo artigo, menciona que “maus resultados não são publicados em revistas de elevada reputação, independentemente do tempo investido”.

1– Considera que existe uma certa obsessão por apresentar resultados positivos (de um potencial fármaco, de uma hipótese que se confirme, etc)? Num plano meramente especulativo, não seria igualmente interessante incorporar os resultados negativos na discussão científica?

Há decerto uma “obsessão” em publicar muito, pois é para muitos cientistas a única forma possível de aumentar a probabilidade de conseguir progredir na carreira científica, probabilidade essa que é por norma bastante reduzida. Para os mais “jovens” que vivem de bolsas ou, na melhor das hipóteses, contratos a termo, que fazem doutoramentos e pós-doutoramentos, a “obsessão” é quase inevitável, dada a competição por essas bolsas e contratos (onde a taxa de insucesso ronda em muitos casos os 90%). Os que “sobrevivem” ao sistema de eliminação são necessariamente aqueles que parecem obcecados. Há ainda a “obsessão” específica com resultados positivos, porque são esses que são publicados nas melhores revistas, isto é, aquelas que têm maior reputação, sendo que são este tipo de publicações que têm maior valor no currículo de um cientista. Portanto, sim, concordo que haja uma obsessão em apresentar resultados positivos. Não obstante, é claro que a motivação não é apenas financeira. Todos queremos descobrir resultados positivos porque são esses resultados que podem de facto mudar o mundo para melhor. Descobrir uma nova droga que cura uma doença é claramente mais importante que descobrir que uma droga não serve um dado objetivo.

O problema emergente disto é que os cientistas se sentem pressionados a sobrevalorizar os seus resultados, de forma a que estas pareçam positivos, ou pelo menos não-negativos. Um outro problema é que se cria um viés na literatura científica motivada pelo facto de que os resultados positivos recebem muito mais atenção que os negativos. Uma consequência deste viés é que, por exemplo, haja a possibilidade de que boas ideias associadas a resultados negativos não sejam discutidas. Ou que, por exemplo, tentativas infrutíferas sejam repetidas mais vezes, pois os cientistas poderão não saber que a sua tentativa já foi refutada por outros cientistas. Talvez ainda pior que isto, o sistema cria um género de “p-hacking” emergente. Isto é, em ciências onde as descobertas dependem de testes estatísticos há sempre um certo nível de incerteza nessas descobertas. Se aceitarmos um nível de incerteza de 5%, isto significa que em 5% das experiências poderemos concluir algo errado por mero acaso. Assim, tendo milhares de cientistas a testar hipóteses semelhantes pelo mundo inteiro, podemos em certos campos encontrar descobertas que correspondem aos 5% do acaso. Tal não seria um problema se os outros 95% tivessem o mesmo tipo de impacto no meio científico que esses 5%. Mas não é isso que acontece. O resultado positivo por mero acaso pode aparecer em revistas científicas lidas pela generalidade dos cientistas, enquanto que os correspondentes resultados negativos podem ser relegados para revistas que não suscitam tanto interesse…

Respondendo à segunda questão, sim, é preponderante pensar em formas de incorporar os resultados negativos na discussão científica. No caso de falsas descobertas, estas acabam por ser descredibilizadas, mas o processo não é tão eficiente e económico quanto poderia ser caso os resultados negativos tivessem maior cobertura. Em geral, o importante seria haver uma maior abertura a discutir ideias, hipóteses e métodos, ao invés de haver um foco tão grande nos resultados. Compreender o porquê de uma ideia não funcionar poderá ser a forma mais rápida de encontrar a ideia que de facto irá funcionar.

2 – É possível afirmar que existe uma maioria de cientistas que não desenvolve atividades de divulgação científica para o público em geral? Que impacto pode ter a divulgação científica nas nossas sociedades?

Desconheço os números oficiais, mas a perceção que tenho é que a esmagadora maioria não faz qualquer tipo de divulgação científica, a menos que seja “obrigada”. A obrigação pode resultar, por exemplo, de critérios de avaliação impostos por organismos de financiamento científico. Na realidade que conheço no Reino Unido, muitos cientistas têm que fazer pelo menos um pouco de divulgação científica de forma a manterem-se competitivos nos concursos de financiamento científico. Por um lado, creio que é uma iniciativa positiva, por outro duvido que os meios usados sejam os melhores.

A ligação entre os cientistas e o público é importante e deve ser promovida, contudo parece-me faltar uma aposta clara nos intermediários. Um cientista não se torna num divulgador de ciência efetivo só com boa vontade (e alguns workshops). Também não é claro para mim que todos os cientistas devam investir parte do seu tempo a tornarem-se em melhores divulgadores. Sou da opinião que cabe antes a divulgadores de ciência especializados fazer a ponte entre os cientistas e o público de forma a garantir uma comunicação clara e proveitosa para ambos.

O impacto de uma maior comunicação seria benéfico tanto para o público, como para os cientistas. O impacto no público não estaria limitado a um carácter lúdico e informativo, como talvez por vezes se possa deduzir. Grande parte da ciência que se faz hoje em dia é financiada por dinheiros públicos [Portugal não é exceção], o que significa que todos temos uma responsabilidade em saber como é que esse dinheiro está a ser gasto e com que objetivos. Assim, para que o público e os seus representantes políticos possam tomar medidas bem fundamentadas e eficazes na gestão do financiamento científico é crucial que estejam bem informados sobre a ciência que estão a financiar. Por outro lado, como sugerido nas questões de cima, uma maior cultura científica traduzir-se-ia numa procura ativa pela verdade o que, por sua vez, teria um impacto significativo no combate à pseudociência, à fraude e à corrupção. Uma sociedade bem informada e com espírito crítico seria menos propensa a eleger um Trump, ou um Bolsonaro, ou a votar a favor de um Brexit.

 

Nota:

[1] Texto publicado no Blog do Autor, Sophia of Nature, disponível em https://sophiaofnature.wordpress.com/2019/08/31/o-que-esta-mal-com-o-sistema-cientifico/

.

.

Esta entrada foi publicada em Educação e Ciência com as tags , , . ligação permanente.