A arte de (re)existir: a precariedade e as lutas laborais no setor da cultura na última década em Portugal – Parte II

Dimensão analítica: Cultura, Artes e Públicos

Título do artigo: A arte de (re)existir: a precariedade e as lutas laborais no setor da cultura na última década em Portugal – Parte II

Autor/a: Priscilla Santos e José Soeiro

Filiação institucional: Departamento de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto

E-mail: prisabr@gmail.com

Palavras-chave: trabalho, precariedade na cultura, lutas laborais.

A arte de (re)existir: a precariedade e as lutas laborais no setor da cultura na última década em Portugal.

Entrevista a José Soeiro

Por Priscilla Santos

Parte 2: Os repertórios de luta

 

No caso dos recibos verdes existiria ainda a precariedade da representação coletiva, certo?

Em princípio, um sindicato é uma organização de trabalhadores por conta de outrem. Ao ser tratado como autónomo, o trabalhador a recibo verde não é representado formalmente por um sindicato. Qual é o problema? Saber se os sindicatos devem estabelecer as fronteiras dos seus associados em função da situação de facto ou da situação formal. Se for pela situação de facto, no caso dos falsos recibos verdes os sindicatos têm toda legitimidade para dizer que, sim, essas pessoas são trabalhadores a quem está a ser negado um contrato, portanto, não vai ser o sindicato a validar a estratégia patronal de utilizar o recibo verde para dissimular a sua condição de trabalhador. Isso gerou uma adaptação das estruturas representativas, sejam comissões de trabalhadores ou organizações sindicais. Uma das novidades do CENA [Sindicato dos Trabalhadores de Espectáculos, do Audiovisual e dos Músicos] foi tentar alterar os estatutos para acolher trabalhadores a recibo verde. O mesmo se passou com a RTP, em que a comissão de trabalhadores tem vindo a representar os recibos verdes. Claro que isso enfrenta resistências. Os mais conservadores, mesmo no movimento dos trabalhadores, olham para o precariado como uma ameaça, em vez de olhá-lo não apenas como aliado, mas até como fonte principal de renovação das estruturas de representação dos trabalhadores. É por isso que grande parte das lutas dos trabalhadores a recibo verde a que temos assistido neste período, como ficou evidente em Serralves e na Casa da Música, não têm sido protagonizadas por sindicatos ou comissões de trabalhadores, mas por grupos informais que encontraram as suas próprias formas de auto-organização e representação.

Nesse caso, ao mesmo tempo que esses trabalhadores se auto-organizaram, usaram recursos tradicionais como a audição no Parlamento.

Houve bastantes resistências no Parlamento. Para alguns partidos, por exemplo, propor que um grupo informal de trabalhadores seja ouvido no Parlamento é uma forma de deslegitimar o monopólio da representação laboral que os sindicatos têm. O Bloco de Esquerda propôs que o grupo informal de trabalhadores da Casa da Música fosse ouvido e, como havia uma grande pressão pública, a proposta acabou por passar. Mas frequentemente o Parlamento resiste a ouvir grupos informais, o que até pode compreender-se, devido à formalidade da própria instituição. O problema é que se só ouvíssemos os grupos formalizados, isto é, sindicatos e comissões de trabalhadores, haveria um enorme contingente da força de trabalho que não teria voz.

David Harvey afirma que o ‘precariado’ substituiu o ‘proletariado’. O problema seria saber como grupos tão desorganizados poderiam se auto-organizar de modo a construir uma força revolucionária. É um pouco o que se tem visto?

Uma parte da esquerda tem feito essa aposta estratégica, um pouco por todo o mundo. A questão é perceber como é que o precariado tem vindo a organizar-se. Os trabalhadores precários deixaram de ser apenas um objeto do qual outros falavam para encontrar as suas formas de auto-organização, que têm sido multiformes: coletivos informais, novas associações, movimentos nascidos nas margens do universo sindical, quando este não respondia à representação de muitos desses trabalhadores. Mas o precariado não constitui uma classe à parte, mas sim uma parte da classe trabalhadora e não há, apesar das tensões que emergem, uma oposição entre esses dois universos – movimentos e sindicatos – na medida em que algumas dessas mobilizações de precários evoluíram para organizações sindicais quando as pessoas conseguiram algum grau de formalização. Aconteceu com o CENA, sindicato que nasceu na sequência de processos de auto-organização dos precários e da dinâmica da Plataforma dos Intermitentes. Noutros casos, os trabalhadores precários engrossaram organizações sindicais já existentes. Noutros, criaram novas organizações, como os Precários Inflexíveis, juntando-se não a partir de um setor de atividade, mas de uma condição comum de precariedade. Houve ainda vários casos em que o resultado foi a criação de associações socioprofissionais, como a dos animadores socioculturais. É muito interessante olhar para os casos de alianças entre os movimentos que já existiam, nomeadamente sindicatos e comissões de trabalhadores, e essas modalidades mais informais de organização, sendo que essas se deparam sempre com o desafio de inscreverem alguma continuidade no tempo da sua intervenção e, para isso, precisam de uma organização. Essa foi um pouco a lição do ciclo de lutas da austeridade: os momentos de mobilização, para se transformarem em movimentos, precisam de estruturas, tomem elas a forma que tomarem. Os que as construíram tiveram mais capacidade de obter vitórias. Quando os movimentos não encontram essas formas de se inscreverem no tempo, muitas vezes, conseguem produzir grandes acontecimentos contestatários, mas que não deixam necessariamente uma marca de transformação perdurável.

Se a arte foi uma espécie de laboratório para a precarização das relações laborais, poderia ser agora um setor de experimentação de resistências a essas precariedades?

As mobilizações dos trabalhadores a falsos recibos verdes no setor da cultura têm sido experiências particularmente significativas. Isso talvez aconteça porque existe essa possibilidade de mobilização de formas de capital social, cultural e simbólico que podem ser ativadas no quadro destas lutas sociais. Estas mobilizações contra os falsos recibos verdes na cultura têm acontecido, sobretudo, no contexto de grandes instituições, que vivem muito da sua imagem. Portanto, o facto de estas mobilizações poderem, por um lado, ativar um conjunto de contactos e de redes de interconhecimento de pessoas que têm voz pública e capital social e simbólico, e, por outro, porem em causa a imagem das instituições culturais, um bem de grande importância para elas, ajuda a explicar a importância e até alguma capacidade de transformação que essas mobilizações têm tido, embora ainda sejam processos em aberto. Mas talvez estejamos a assistir a uma nova articulação entre a chamada “crítica artística” e o retomar de uma “crítica social” à exploração do trabalho, para usarmos os termos do Luc Boltanski e da Ève Chiapello.

Para além das questões materiais, parece existir uma subjetivação da precariedade: não é só “tenho um trabalho precário”, mas “sou precário”.

Desde a formação dos movimentos dos trabalhadores precários – que aconteceu em Portugal, mais intensamente, a partir de 2008– vários desses movimentos adotaram a categoria de “precários” como uma categoria que extravasa as próprias fronteiras laborais para nomear uma precariedade existencial. Esses movimentos utilizam militantemente essa categoria procurando transformar uma condição produzida pelo próprio sistema (de que seriam vítimas) numa identidade de luta (de que são agentes). O facto de os trabalhadores terem utilizado essa identidade de precário como um mecanismo de identificação coletiva permitiu, de facto, um processo de mobilização e de subjetivação política que foi muito importante.

Referências:

Boltanski, L. e Chiapello, E. (2009). O Novo Espírito do Capitalismo. São Paulo: Martins Fontes.

Harvey, D. (2012). Cidades Rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo: Martins Fontes.

Menger, P. Retrato do Artista Enquanto Trabalhador: metamorfoses do capitalismo. Lisboa: Roma Editora, 2005.

Soeiro, J. (2015). A formação do precariado: transformações no trabalho e mobilizações de precários em Portugal. Coimbra, Tese de doutoramento. Disponível em: <http://hdl.handle.net/10316/28406>. Último acesso: 2/12/20

Soeiro, J. (2020). “Recebo Verdi”. A cultura dos recibos verdes na cultura, In: Cadernos da Pandemia – Reflexões sobre o Trabalho Artístico, Cultural e Criativo na Era Covid-19, Instituto de Sociologia da Universidade do Porto, v. 5, p 69-80.

.

.

Esta entrada foi publicada em Cultura, Artes e Públicos com as tags , , . ligação permanente.