Dimensão analítica: Cultura, Artes e Públicos
Título do artigo: A arte de (re)existir: a precariedade e as lutas laborais no setor da cultura na última década em Portugal – Parte I
Autor/a: Priscilla Santos e José Soeiro
Filiação institucional: Departamento de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto
E-mail: prisabr@gmail.com
Palavras-chave: trabalho, precariedade na cultura, lutas laborais.
A arte de (re)existir: a precariedade e as lutas laborais no setor da cultura na última década em Portugal.
Entrevista a José Soeiro
Por Priscilla Santos
Pode-se dizer que o decénio de 2010 a 2020 começa com uma crise econômica e termina na iminência de outra em Portugal. Como têm sido as condições laborais dos trabalhadores da cultura nestes últimos dez anos marcados por uma precarização generalizada do trabalho? Nesta conversa, José Soeiro, sociólogo licenciado pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, doutorado pela Universidade de Coimbra com a tese intitulada “A Formação do Precariado. Transformações no trabalho e mobilizações de precários em Portugal” e também deputado pelo Bloco de Esquerda na Assembleia da República, fala sobre a falta de contratos laborais condignos e de proteção social entre os trabalhadores da cultura e as mobilizações que se utilizam de antigos e novos repertórios – como o movimento de precários e precárias de Serralves e Casa da Música, que, no período pandêmico, organizou manifestações no espaço público, cartas abertas, mobilização da mídia e audições no Parlamento – para descortinar a situação laboral de precariedade na cultura que insiste em existir no país.
Parte 1: A precariedade laboral
A precariedade entre os trabalhadores da cultura é o “novo normal” ou o “velho normal”?
Na cultura sente-se, por um lado, o movimento geral da precarização do trabalho. Por outro, o setor cultural foi uma espécie de laboratório para formas de trabalho precário muito assentes numa ideologia da autonomia, do empreendedorismo, da auto-realização através do trabalho criativo, alegadamente sem subordinação hierárquica ou jurídica. Esse tema é tratado num livro, “Retrato do Artista Enquanto Trabalhador”, do Pierre-Michel Menger, que aborda justamente o modo como no campo artístico se ensaiaram essas formas de flexibilidade e de autonomia. Tendo por base essas narrativas morais quase de legitimação dos enquadramentos precários, a cultura acabou por ser um setor onde se desenvolveram e se levaram ao extremo algumas formas de enquadramento laboral a partir da figura do trabalhador por conta própria, supostamente sem amarras do ponto de vista do seu vínculo. Nesse aspeto, o que está a acontecer agora não é propriamente uma novidade, é um processo bastante anterior à pandemia.
A crise da austeridade de 2011 já teria piorado as condições de trabalho na cultura?
Quando falamos em setor cultural estamos a falar dos criadores, autores, intérpretes, mas também de todo o universo técnico à volta. Também estes passaram pela desregulação e precarização nesse período da Troika, de 2012 a 2014, em que houve alterações profundas nas leis laborais e substituição de trabalho efetivo por trabalho precário. A crise foi apresentada, então, como um período de destruição criativa de postos de trabalho, e, depois, quando houve a retoma, deu origem a enquadramentos precários. O corpo técnico das instituições culturais, como museus e teatros nacionais, em princípio, tinha relações laborais um pouco mais estáveis do que os criadores e intérpretes, mas se formos para a música já é diferente. O ethos destas profissões técnicas parece ser também, como vemos hoje, menos vulnerável à narrativa do trabalho artístico como um trabalho individual, autónomo que serviu para justificar uma certa forma de precarização apresentada como um mecanismo de autonomia.
A falta de contratos laborais e de proteção social é apontada como a principal fonte de precariedade entre os trabalhadores da cultura. Quais as suas consequências?
Penso que as duas coisas estão muito interligadas porque o nosso sistema de proteção social foi construído a partir do contrato de trabalho por conta de outrem, que permite repartir os riscos, ficando as contribuições para a Segurança Social essencialmente sob o encargo da entidade empregadora, dando acesso à cobertura de um conjunto de eventualidades: reforma, doença, parentalidade e desemprego, ponto mais relevante da discussão atual. O sistema de proteção social não foi pensado nem construído para proteger prestadores de serviço, que trabalham para várias entidades que não são seus empregadores, mas sim contratantes. Por exemplo, aos verdadeiros prestadores de serviço não se aplica a categoria de “desemprego”, já que, se for verdade que são “independentes”, não têm um “emprego”, nem um empregador, mas prestam serviços autonomamente. Assim, a migração da figura do contrato de trabalho para a do contrato de prestação de serviços correspondeu a uma grande desproteção social. Claro que tudo isso é em grande medida uma ficção, já que boa parte dos recibos verdes são falsos recibos verdes, ou seja, são pessoas que verdadeiramente têm um empregador, têm uma relação de trabalho subordinada, mas que está dissimulada por uma falsa prestação de serviços.
Compreende-se, pois, que a agenda do precariado, em Portugal, seja muito marcada pela reivindicação do reconhecimento do direito ao contrato de trabalho, isto é, pela exigência de integração nas formas clássicas de regulação do trabalho. Nunca tiveram verdadeira centralidade, nestas mobilizações, ideias como a de um rendimento básico incondicional, que “libertasse” os trabalhadores das formas de regulação do trabalho que vêm do passado, do fordismo. O que o precariado em Portugal tem vindo a formular como reivindicação é, fundamentalmente, o acesso ao contrato de trabalho, com horário, proteção social e possibilidade de representação sindical.
Que medidas têm se tomado neste sentido?
Do ponto de vista de políticas públicas tem havido três caminhos. Um é a lei da Ação Especial de Reconhecimento da Existência de Contrato de Trabalho, de 2013, que reforça a fiscalização da utilização indevida do contrato de prestação de serviços. O segundo debate é sobre se deve ou não haver uma proteção que se assemelhe à de subsídio desemprego para os que sejam verdadeiros trabalhadores independentes. Em terceiro lugar, está em discussão, entre o governo e as associações, o Estatuto dos Profissionais da Cultura, com regras específicas para os trabalhadores do setor, quer no acesso à proteção do desemprego com menos tempo de descontos [forma de fazer frente à intermitência de trabalhos entre profissionais da cultura], quer com outras formas de contabilizar o tempo de trabalho e descontos. Está em debate.
Figura 1 – Trabalhadores dizem não à precariedade laboral durante vigília frente à Casa da Música. 6 de junho de 2020.
(Hugo Veludo, 2020)
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