Cuidar à distância: notas sobre a circulação de bens terapêuticos naturais de São Tomé e Príncipe

Dimensão analítica: Saúde e Condições e Estilos de Vida

Título do artigo: Cuidar à distância: notas sobre a circulação de bens terapêuticos naturais de São Tomé e Príncipe 

Autora: Rita Rodrigues

Filiação institucional: Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA), ISCTE-IUL – Projecto de doutoramento financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia

E-mail: rodrigues.arita@gmail.com

Palavras-chave: Circulação, cuidar, recursos medicinais naturais.

Os processos pelos quais a mobilidade humana constitui, desfaz e refaz todo um corpo de saberes e práticas é revelador tanto das dinâmicas no trânsito de bens e práticas terapêuticas em contexto migratório, como das redes de uso, acumulação e intercâmbio de recursos medicinais naturais, bem como dos conhecimentos que os acompanham. Assim, pensar o modo e as razões pelas quais a circulação de folhas, cascas, raízes e frutos se processa entre São Tomé e Príncipe e Portugal permite desvendar conexões, circuitos e contextos de (re)criação das estratégias de gestão da saúde e doença e, em simultâneo aprofundar as (des)continuidades no que respeita saberes e afazeres “da terra”.

No processo migratório conhecimentos e práticas diluem-se e adquirem, por vezes, outras formas, existindo por exemplo, factores endógenos como o processo de integração no contexto de acolhimento, a idade, a escolaridade, entre outros que subjazem estes processos de (des)continuidade e adaptação. Contudo, são amplas as práticas que se reimprimem em contexto migratório, formas de fazer e de ser que permanecem além-fronteiras e entre gerações. O conhecimento sobre recursos medicinais naturais deve assim ser perspectivado enquanto saber sensorial, dotado de emoção e de memória que o acompanha e que constituem, em última instância, o seu poder [1]. Assim, é possível compreender o modo como se (re)produzem saberes e práticas, bem como o valor patrimonial que os recursos medicinais naturais representam para santomenses que residem em Portugal.

De facto, o modelo biomédico constitui apenas um entre o conjunto diverso de sistemas de cura e bem-estar disponíveis o que nos remete de igual modo para pensar sobre percursos terapêuticos paralelos e os processos de hierarquização do consumo de práticas de cura, com influência directa nos estados de saúde/doença.

Procurando dar luz a esta questão a entrevista a A. revela a dimensão e o potencial que as práticas terapêuticas santomenses assumem no quotidiano e, em simultâneo, o modo como (re)formatam experiências de vida: “…eu tive grávida, não gosto de ir ao médico mas por isso comecei a ir ao médico mais vezes. [Por outro lado] Mesmo cá em Portugal arranjaram-me não sei quantas folhas para tomar banho, para ajudar com a gravidez […] a ‘medicina tradicional’ na gravidez é uma coisa indispensável. Porque mesmo eu que cresci cá, as pessoas com quem nós convivemos cá, mesmo cá! […] Só o facto de saberem que estava grávida começaram a perguntar se eu já tomei a folha não sei quê, se já tomei banho com a folha não sei quantas e “obrigaram-me” automaticamente a entrar nesse sistema. É uma coisa que vai acompanhar a malta para o resto da vida, acho eu! […] agora se eu tiver outro filho já sei que tenho que mandar vir não sei quantas folhas para fazer isto e aquilo […] A., 21 anos, Julho de 2016, Porto.

Contemplando ainda a variabilidade social do conhecimento, em particular, das plantas medicinais e dos seus usos, atenta-se à presença de um vasto conhecimento trazido do “passado” com aplicação prática no “presente”.

Práticas que se reproduzem ao longo de várias gerações mas cuja explicação remete frequentemente para o conhecimento dos mais velhos: […] tem algumas folhas que as pessoas mais velhas escolhem lá nas roças e a gente ferve aquelas folhas e desmancha tudo dentro de uma bacia e senta em cima. Quando a mulher sai mesmo do hospital, depois de ter o bebé e vai para casa tem que fazer isso durante uns três dias ou uma semana. […]. Diz-se que é para o órgão genital ficar mais rijo, mais resistente e também para ajudar a mãe a cicatrizar a ferida mais rápido. […] foi cá mas fiz. Tive pessoas que foram lá de férias e me trouxeram as folhas e eu fiz cá em casa. Tive ajuda de uma amiga porque a minha mãe naquele momento não estava cá. E., Agosto de 2016, Coimbra.

De sublinhar que também a própria flexibilidade do conhecimento [1] nos alerta para os processos de apropriação e adaptação de saberes e práticas cujo carácter eminentemente circulatório e transformativo permite compreender precisamente os moldes em que opera a sua continuidade histórica e social. Tal remete para um conjunto de questões que possibilitam contextualizar os sistemas terapêuticos e os processos que permeiam os discursos de legitimação, bem como a retórica em torno da eficácia terapêutica e até mesmo dos seus limites.

A circulação destes bens terapêuticos e o propósito final a que se destinam: cuidar, conduz-nos para reflectir, por um lado, sobre as redes de cuidado interpessoal e respectivas micro dinâmicas que aclaram processos de preparação e intercâmbio de um vasto conjunto de mezinhas e afins e, por outro lado, sobre todo mercado (in)formal que potencia. Pode-se dizer que constituem, assim, redes (in)formais de cuidado consolidadas a partir do trânsito contínuo de bens que além de sinalizarem o garante da sustentabilidade social e cultural dos usos das plantas, também fomentam o desenvolvimento de um mercado informal (troca, compra e venda) de valor socioeconómico interessante, tanto na origem como no destino.

Notas

[1] Moreira-Frazão, Amélia (2010) A natureza em perspectiva: reflexões sobre saberes ecológicos locais e conhecimentos científicos, In A.G.C Alves, F.J.B Souto, N. Peroni (Org.) – Etnoecologia em perspectiva: natureza, cultura e conservação, Recife: NUPEEA, pp. 75-88.

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