Dimensão analítica: Ambiente, Espaço e Território
Título do artigo: Notas de pesquisa sobre o segundo ciclo de planeamento da água
Autor: José Gomes Ferreira
Filiação institucional: Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e Programa de Pós-Graduação em Estudos Urbanos e Regionais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
E-mail: jose.ferreira@outlook.com
Palavras-chave: planos de região hidrográfica, Directiva-Quadro da Água, participação pública.
No momento em que Portugal se prepara para o arranque do terceiro ciclo de planeamento das bacias hidrográficas, importa refletir sobre o processo que conduziu à aprovação dos Planos de Gestão de Região Hidrográfica 2016-2021 (PGRH). Muito se tem dito sobre o efeito da crise económico-financeira neste processo, cuja face visível foi o abandono de séries temporais de dados recolhidos a partir da rede de monitorização de águas superficiais. Mas não podemos imputar tudo à falta de meios financeiros, pois parte do retrocesso ficou a dever-se a novas orientações políticas e de governança das águas em Portugal.
Em 2012, com a aprovação da lei orgânica do novo Ministério da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território e de alterações da Lei da Água, as Administrações de Região Hidrográfica (ARH) perderam autonomia, passando os serviços a funcionar de forma centralizada na Agência Portuguesa do Ambiente (APA), que com a integração do Instituto da Água acumulou a função de Autoridade Nacional da Água. Também os Conselhos de Região Hidrográfica foram suspensos, sendo somente reativados em 2015 devido à necessidade de aprovação dos novos planos. A perda de autonomia das ARH desvirtuou o espírito da Directiva-Quadro da Água (DQA) e retirou operacionalidade à administração pública, levando ao afastamento dos cidadãos das instituições e à perda de confiança [1].
Estes acontecimentos tiveram um efeito multiplicador no segundo ciclo de planeamento em questões como o calendário, os procedimentos, a visão sobre recursos hídricos e o entendimento sobre os processos de governança. Caberia à União Europeia lançar esse debate, pois avançou-se sem se avaliar os resultados do ciclo anterior e sem se avaliar o primeiro período de aplicação da DQA. Em Portugal, as instituições públicas assumiram que o país tinha um calendário que não poderia parar, pois, de outro modo, seria sancionado por incumprimento.
Sem meios financeiros para proceder ao lançamento de concursos públicos para elaboração dos PGRH, a Agência Portuguesa do Ambiente viu-se confrontada com a necessidade de avançar através dos seus serviços. O envolvimento direto no planeamento dos serviços públicos foi um desafio positivo, cuja experiência e motivação será importante nos próximos ciclos. Foi positivo confrontar o Estado com a inexistência de rotinas de execução, escuta e integração de posições fora da sua esfera. No processo foi absolutamente decisivo o contributo de associações da sociedade civil, de representantes da Universidade e de alguns especialistas, quer na promoção de debates como na elaboração de pareceres sobre as suas áreas de influência. O grande problema não foi a APA assumir a elaboração dos estudos, mas sim a tendência para agilizar procedimentos e insistir no cumprimento do calendário, deixando pouco espaço à ampla participação da sociedade civil e ao debate de maior profundidade. A médio prazo, a preocupação com o calendário contribuirá para o afastamento das pessoas relativamente aos recursos hídricos, ao situar a elaboração dos planos apenas no nível procedimental e não colocar em prática uma visão que reforce o valor ambiental, económico e social da água e aproxime os utilizadores dos problemas.
Na articulação com Espanha, reconhece-se o esforço de cooperação, ainda assim, marcado pelo atraso nacional e pelo descompasso relativamente ao país vizinho. Sem esquecer que Espanha possui outros instrumentos de planeamento da água sem participação portuguesa a merecer acompanhamento português.
Figura 1. Calendário de elaboração dos planos hidrológicos de Portugal e Espanha [2 e 3]
PORTUGAL | ESPANHA | |
1ª FASE | 22 de dezembro de 2012 – abertura do período de consulta pública dos documentos iniciais, com a disponibilização do Calendário e Programa de Trabalhos, prolongando-se durante 6 meses. | 24 de maio de 2013 – abertura do periodo de consulta pública dos documentos iniciais. correspondentes ao programa, calendário, estudo geral da demarcação e fórmulas de consulta, prolongando-se durante 6 meses. |
21ª FASE | 17 de novembro de 2014 – disponibilizados por 6 meses dos relatórios relativos à elaboração das Questões Significativas da Gestão da Água e à Caracterização da Região Hidrográfica e o resumo dos documentos para as Regiões Hidrográficas de Portugal Continental | 31 de dezembro de 2013 – início da elaboração dos temas importantes (QSIGA) para cada âmbito de planificação, cujos documentos submetidos a um novo período de consulta pública de 6 meses. |
3ª FASE | 12 de junho de 2015 – disponibilização até 29 de fevereiro de 2016 para consulta pública da versão provisória dos Planos de Gestão de Região Hidrográfica para as oito Regiões Hidrográficas de Portugal Continental. | 30 de Dezembro de 2014 – abertura do periodo de consulta pública dos documentos denominados “Propuesta de proyecto de revisión del Plan Hidrológico”, “Proyecto de Plan de Gestión del Riesgo de Inundación” y “Estudio Ambiental Estratégico“. |
4ª FASE | 20 de setembro de 2016 – Resolução do Conselho de Ministros n.º 52/2016, retificada pela Dec. Retificação n.º 22-B/2016, de 18 de novembro, aprovam os PGRH de Portugal Continental 2016-2021. | 2016, de 8 de Janeiro – publicado o Real Decreto 1/2016, que aprova a revisão dos Planos Hidrológicos das principais demarcações espanholas. |
O processo participativo, em destaque no ciclo anterior, foi pouco mobilizador. As sessões contaram essencialmente com representantes da administração pública e foram rotinizadas e orientadas para três ou quatro localidades por região hidrográfica. O portal PARTICIPA foi benéfico, mas insuficiente. A participação não deve ser reduzida a um portal e a sessões expositivas, necessitamos de ativar a cidadania e o interesse pelo tema. Mas para se estimular a participação é necessário recorrer a outro expediente, capaz de chegar às pessoas e de as envolver. E é necessário intervir à escala regional, com informação credível e atualizada. Deixar a representatividade da sociedade civil para os Conselhos de Região Hidrográfica é manifestamente pouco.
Em suma, necessitamos de colocar em prática uma nova visão sobre a água, que reforce as políticas de protecção e reconheça o seu lugar de agência e matriz cultural nas sociedades e na sua história, tão importante que marca a forma como o Estado se organiza e como nos relacionamos uns com os outros e com o espaço natural enquanto espaço de fruição e bem-estar. Mas não podemos, ao mesmo tempo, querer atingir a boa qualidade ecológica de todas as massas de água e fazer uso de enorme discricionariedade na aplicação dos princípios do poluidor-pagador e utilizador-pagador, expondo a incapacidade do Estado em resolver problemas de poluição e conflito e enormes lacunas na defesa do interesse colectivo face a sectores económicos com enorme impacto socioambiental.
Notas
[1] De Stefano, Lucia; Empinotti, Vanessa; Schmidt, Luísa; Jacobi, Pedro Roberto; Ferreira, José Gomes & Guerra, João. (2016). Measuring Information Transparency in the Water Sector: What Story Do Indicators Tell?. International Journal of Water Governance, 4, 1-22
[2] MAPAMA (2016). “Planes hidrológicos de cuenca vigentes”. Ministerio de la Agricultura y Pesca, Alimentación y Medio Ambiente. Disponível em <http://www.mapama.gob.es/es/agua/temas/planificacion-hidrologica/planificacion-hidrologica/planes-cuenca/default.aspx> a 27 de Fevereiro de 2018.
[3] APA (2016). ” Planos de Gestão de Região Hidrográfica – 2.º Ciclo”. Agência Portuguesa do Ambiente. Disponível online a 27 de Fevereiro de 2018 em http://www.apambiente.pt/index.php?ref=16&subref=7&sub2ref=9&sub3ref=848
.
.