Cicloturismo: Desporto e Turismo

Dimensão analítica: Saúde e Condições e Estilos de Vida

Título do artigo: Cicloturismo: Desporto e Turismo

Autor: Vítor Rosa

Filiação institucional: Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias

E-mail: vitor.rosa@ulusofona.pt

Palavras-chave: Desporto, Cicloturismo, Bicicleta.

Conhecemos a utilidade da prática desportiva e do exercício físico para o corpo e para o espírito, mas nós somos todos, ou quase, submetidos, na nossa vida profissional, a um horário quotidiano restritivo e, por vezes, oprimente. Perante este constrangimento, é natural aspirarmos intensamente a períodos de descanso (férias, fins-de-semana, folgas, etc.) e a uma real liberdade. Como conciliar o desporto e a liberdade? A palavra desporto evoca esforço, método e disciplina. A noção de liberdade está ligada a uma sensação de relaxamento e de independência. Não sendo sinónimos, estas duas palavras parecem difíceis de se associarem. Colocando o corpo num estado de bem-estar, e tornando o espírito livre, a bicicleta é um das raras práticas que concilia estes dois estados.

O ciclismo, pelo menos o utilitário, pode ser praticado desde que saímos da porta de casa, em todas as estações do ano, sem estádios, sem piscina, sem pista, sem terreno e sem parceiro. É preciso somente uma bicicleta. O ciclismo pode ser dividido em três categorias, segundo uma classificação que remonta aos inícios da prática de forma massiva. A mais conhecida é a do ciclismo utilitário, isto é, a utilização da bicicleta como meio de transporte, num quadro de atividade profissional ou simplesmente ir de um local para outro. A segunda corresponde ao ciclismo de competição. É a categoria das corridas de ciclismo, realizadas pelos ciclistas profissionais, seja em pista, em estrada ou, mais recentemente, os circuitos especializados de ar livre. Por fim, o cicloturismo é a terceira das categorias, que consiste em descobrir as paisagens, os monumentos, os locais ou ir ao encontro das populações.

O que se entende por cicloturismo?

A invenção do conceito é tradicionalmente atribuída ao francês Paul de Vivie (1853-1930), conhecido por “Vélocio” [1], [2]. Na sua revista “Le Cycliste”, de dezembro de 1889, o “pioneiro do cicloturismo moderno” [3] escreve: “Para o cicloturista, passando este neologismo, andar de bicicleta não é um fim; é simplesmente uma das formas, a melhor na minha opinião, para satisfazer a paixão pelo turismo” [4]. Segundo Henry (2005) [1], esta palavra viria a entrar no dicionário francês Larousse, em 1932 [2]. No entanto, o historiador D’Hubert (2014) [4] refuta esta hipótese, referindo que ela não se encontra nem no Larousse (1931-1937), nem no Dictionnaire de l’Académie française de 1932. É, somente, em 1937 que ela é adotada de forma durável num programa (“Le cyclotourisme”) de Rádio-Paris, em 27 de abril de 1937.

La Croix (1977: 26) [5] avança uma definição do que se entende por cicloturismo:

“Arte de viajar de bicicleta (individualmente, em família ou em grupo) em todos os locais, em todas as idades e com pouco dinheiro, segundo as possibilidades físicas e o tempo de lazer que se dispõe, num percurso indo de alguns quilómetros a várias centenas de quilómetros, numa ou várias etapas, seguindo itinerários estudados previamente ou simplesmente segundo as circunstâncias, em toda a liberdade e independência, para o seu prazer. O cicloturismo permite a todos uma solução equilibrada para o problema da utilização dos tempos de liberdade. Não se trata de se escolher uma elite: o espírito do cicloturismo não tende a designar o(s) melhor(es), mas a permitir que o maior número possível seja capaz de realizar uma determinada performance. A essência do cicloturismo não deve ser a rivalidade, seja ela desportiva ou amical, mas de entreajuda total e permanente. A expressão maior do cicloturismo é a viagem em bicicleta”.

A junção de duas palavras “ciclismo” e “turismo” complica a sua definição. Ninguém colocou a noção de “lazer”, que, segundo Dumazedier (1962) [6], é um conjunto de ocupações às quais o indivíduo pode entregar-se de livre vontade, seja para repousar, seja divertir-se, recrear-se e entreter-se, ou ainda para desenvolver sua informação ou formação desinteressada, sua participação social voluntária ou sua livre capacidade criadora após livrar-se ou desembaraçar-se das obrigações profissionais, familiares e sociais. Prefere-se a de “desporto”, de “turismo” ou de “prática”. Todavia, o cicloturismo é definitivamente um lazer, na medida em que se pratica fora do quadro da atividade profissional, tendo um fim hedonista. Ele pode ser lúdico, através de um jogo de orientações ou de atividades de grupos. O que é certo é que esta atividade está, na sua origem, afastada da prática desportiva e competitiva. Também nos permite afastar a ideia de que a bicicleta é apenas um meio de transporte. O conceito assume um sentido a partir da diversificação das formas de turismo durante os primeiros anos do século XX.

Em Portugal, o cicloturismo surge em 1890, não havendo dados conhecidos sobre a sua evolução até aos anos 1920. Ele ressurge durante os anos de 1940 e 1950, pela mão de António Duarte Laureano, que cria um grupo, chamado “Os Quinze”, em Lisboa, percorrendo o país e promove as ideias do francês Velócio. Em setembro de 1987, foi fundada a Federação Portuguesa de Cicloturismo e Utilizadores de Bicicleta (FPCUB), agregando, segundo os seus números, 1200 associações e clubes, representando cerca de 30 mil pessoas. Arte de viver, mas igualmente prática benéfica para a saúde, o cicloturismo encontra um entusiasmo crescente em todas as faixas etárias da população [7].

Não é preciso ser membro de um clube de cicloturismo para o praticar. A imensa maioria dos ciclistas de domingo estão neste caso. As inúmeras manifestações organizadas em cada país pelos clubes aderentes oferecem a possibilidade, em se agrupando, de criar laços de amizade entre os praticantes. O seu objetivo não se limita somente à adesão a um clube, mas de provocar no cicloturista solitário, para além de algumas vantagens materiais (conselhos, documentação, revistas, seguros, etc.) a simples alegria de pertencer a uma mesma família.

 

 

Referências

[1] Raymond, H. (2005). Paul de Vivie, dit Vélocio : l’évolution du cycle et le cyclotourisme, Fédération française de cyclotourisme.

[2] Raymond, H. (2010).  Histoire du cyclotourisme, 1ère partie, 1865-1939, Ivry-sur-Seine, Fédération française de cyclotourisme.

[3] Deloge, M. (1981). Cyclisme de loisir et cyclotourisme. Paris : Editions Amphora.

[4] D’Hubert, F. (2014). Enquête d’évasion : le voyage cyclotouriste dans la France de l’entre-deux-guerres, Université Paris 1 (Panthéon-Sorbonne), Histoire des sociétés occidentales contemporaines (XIXe-XXIe siècle).

[5] La Croix, J. (1977). Le cyclotourisme. Paris : Editions de Vecchi.

[6] Dumazedier, J. (1962). Vers une civilisation du loisir ?, Seuil, Points.

[7] Resende, J. C. & Vieira Filho, N. (2011). Cicloturistas na Estrada Real: perfil, forma de viagem e implicações para o segmento. Turismo em Análise, v. 22, pp. 168-194.

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