A praxe académica: aspetos de unidade

Dimensão analítica: Educação, Ciência e Tecnologia

Título do artigo: A praxe académica: aspetos de unidade

Autor: José Pedro Silva, Elísio Estanque, João Mineiro, João Sebastião, João Teixeira Lopes

Filiação institucional: ISUP, CES, CRIA-ISCTE, CIES-ISCTE, ISUP

E-mail: j.silva.pedro@gmail.com, elisio.estanque@gmail.com, joao.mineiro.6@gmail.com, joaosebstiao@iscte.pt, jmteixeiralopes@gmail.com

Palavras-chave: praxe académica, ensino superior, ritual.

A expressão praxe académica, na sua aceção mais comum, remete para um conjunto de práticas ritualizadas com que, na generalidade das instituições de ensino superior portuguesas, a maioria dos estudantes recém-chegados é recebida pelos colegas mais velhos. Este artigo foca esse fenómeno, apresentando as suas caraterísticas fundamentais, ou seja, aquelas que lhe conferem unidade apesar de uma notória diversificação de práticas pelas diversas academias, instituições e até cursos. O texto apresentado baseia-se num estudo [1] recente sobre a praxe em Portugal.

A praxe consiste num ritual de iniciação em que os recém-chegados se devem submeter a provas impostas pelos estudantes mais velhos, contendo frequentemente um grau variável de violência física, psicológica ou simbólica. Para serem aprovados como membros de pleno de direito do novo grupo, os primeiros devem passar por testes de fidelidade que funcionam também como uma primeira aprendizagem das normas de conduta, formais ou informais, que regem a vida coletiva deste grupos particulares. Assim, a praxe deve ser entendida como um mecanismo de socialização e integração. Os estudantes que a ela aderem destacam essa dimensão socializadora, embora nem sempre se mostrem plenamente conscientes das suas contradições. Se a disciplina, o esforço, o espírito de grupo, a igualdade e solidariedade entre pares, a obediência ao superior hierárquico e o respeito pela sua autoridade são valores particularmente salientes, também devemos referir o hedonismo, o gregarismo e uma celebração da virilidade que pode degenerar em humilhação, sexismo, machismo e homofobia. A praxe é ainda entendida por muitos como uma socialização antecipatória, na medida em que alguns dos valores que transmite – a disciplina, o respeito, o esforço e a obediência às hierarquias – são entendidos pelos estudantes envolvidos como competências importantes para uma boa adaptação ao mundo do trabalho, numa interiorização clara dos discursos ideológicos dominantes sobre as relações laborais.

Ainda que as suas raízes se encontrem nas práticas violentas com que, ao longo dos séculos, os estudantes de Coimbra recebiam os novos colegas, a praxe académica só existe com esta designação desde a segunda metade século XIX, momento em que adquiriu um novo significado, cristalizando-se como tradição [2]. Desde então, esteve suspensa mais do que uma vez e sofreu inúmeras modificações, adaptando-se às transformações sociais. Foi apenas no final do século XX, depois de ressuscitada em Coimbra, que se expandiu por todo o país, articulando a forte influência coimbrã com várias especificidades locais que foi encontrando. Neste sentido, não é despropositado falar da praxe como uma tradição que tem muito de inventado e reinventado [3].

A praxe académica contribui para integrar num grupo. O estudante que chega ao ensino superior e aceita ser por ela acolhido encontra um papel social pré-definido num coletivo com uma identidade construída e reforçada através do efeito socializador da praxe e também dos seus símbolos, dos cânticos que exaltam a pertença, dos conflitos encenados com outros grupos de estudantes praxistas, dos momentos descontraídos de sociabilidade e hedonismo, e dos desfiles e celebrações públicas em que os traços dessa identidade coletiva são exibidos perante a cidade onde se localiza a instituição de ensino. Mas, ao mesmo tempo que integra, a praxe também separa, criando oposições vincadas entre quem está dentro e quem está fora, quem é estudante e quem não é estudante, quem foi praxado e quem não foi praxado.

A praxe apresenta-se assim ao novo estudante como um mecanismo de integração, isto num momento de mudança que ocorre quando o sentido de si ainda está em construção. Esta mudança, sobretudo no caso daqueles que se deslocam para uma nova cidade, pode trazer incerteza e insegurança. A expetativa de forjar amizades “para a vida” num grupo unido e facilitador de experiências “únicas” funciona como um forte atrativo, especialmente quando, como vários estudantes referem, não se conseguem vislumbrar outras formas de integração eficazes na nova realidade.

A importância da hierarquia é outro dos aspetos fundamentais da praxe. Ainda que possa variar ligeiramente consoante os locais, designadamente no número de posições que contém e respetivas designações, ela apresenta sempre duas caraterísticas fundamentais. Primeiro, o lugar na hierarquia é determinado, antes de mais, pela antiguidade do estudante. Isto significa que os estudantes com mais inscrições ocupam o topo, enquanto os recém-chegados se encontram invariavelmente na base. Depois, esta hierarquia impõe uma relação de poder assimétrica entre os novos estudantes e os seus colegas mais velhos: os primeiros devem submeter-se aos segundos e obedecer às suas ordens. Embora se possa argumentar que esta relação só existe mediante o consentimento dos mais novos, revogável a qualquer momento, há que referir os mecanismos que contribuem para produzir o assentimento. Assim, em muitos contextos, o aluno que não quer participar na praxe deve declará-lo de forma pública e formal, justificando a sua opção e passando a ser declarado de “anti-praxe”. Para além disso, quem recusa a praxe pode ser formalmente excluído de alguns rituais académicos, isto para além de ficar “naturalmente” mais afastado das pessoas que aderem à praxe. O assentimento resulta muitas vezes do poder simbólico dos estudantes mais velhos, produzido através da mobilização da força da tradição, da ostentação do traje e outros símbolos académicos, de formalismos como os códigos de praxe, da definição do estatuto “anti-praxe”, da expetativa de integração (ou não) no grupo e, por vezes, da legitimação da praxe pelas direções de muitas instituições de ensino superior e associações de estudantes. A participação na praxe nem sempre corresponde a uma opção esclarecida, mas antes a uma submissão ao poder do outro – submissão inconsciente, como é necessário para a eficácia do poder simbólico [4].

Terminamos referindo um último aspeto da praxe, particularmente interessante do ponto de vista sociológico: enquanto celebração efusiva do estatuto de estudante do ensino superior num momento em que este já não é garante de uma futura posição confortável no espaço social, ela revela uma juventude que, num contexto de colonização crescente das vidas pelas lógicas de mercado, de individualização e enfraquecimento dos laços sociais tradicionais, de desvalorização dos diplomas e precarização laboral e, consequentemente, colocada perante um futuro incerto e arriscado, devora o presente através da reinvenção do passado e da exaltação do grupo, da sua identidade coletiva e do seu status transitório.

Notas:

[1] Teixeira Lopes, João; Sebastião, João (coord.) (2017), A Praxe como Fenómeno Social. Disponível em URL [consult. 12 Jun 2017] <http://www.dges.gov.pt/sites/default/files/naipa/a_praxe_como_fenomeno_social.pdf>

[2] Cruzeiro, Maria Eduarda (1979), “Costumes estudantis de Coimbra no século XIX: tradição e conservação institucional”, Análise Social, XV (60), pp. 795-838

[3] Hobsbawm, Eric; Ranger, Terence (org.) (1984), A invenção das Tradições, Rio de Janeiro, Paz e Terra

[4] Bourdieu, Pierre (1989), O Poder Simbólico; Lisboa, Difel.

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