O processo de medicalização na doença mental

Dimensão analítica: Saúde

Título do artigo: O processo de medicalização na doença mental

Autor: Joel Oliveira

Profissão: Sociólogo

E-mail: jfp.oliveira@hotmail.com

Palavras-chave: doença mental, medicalização, modelo biomédico.

O desenvolvimento da indústria da tecnologia médica nas últimas décadas, aliado aos interesses económicos da indústria farmacêutica, tem promovido o alargamento da esfera de actuação da medicina e conferido um maior poder ao modelo biomédico. Neste sentido, uma abordagem sociológica sobre o processo de medicalização, nomeadamente no que concerne à doença mental, permite aferir as posições dominantes e verificar o modo como estas se sedimentaram, adquiriram notoriedade e legitimidade num determinado contexto social.

Com o fim do Império Romano as doenças mentais voltaram a ser encaradas como resultado de causas mágicas ou sobrenaturais, tal como havia sucedido no período anterior à civilização greco-romana. O processo terapêutico era exercido por sacerdotes e feiticeiros, justificando a sua acção pela concepção demoníaca da doença psíquica [5].

O tratamento nos asilos, durante a Idade Média, baseava-se num banho frio para refrescar os seus espíritos ou as suas fibras. O tratamento psicológico ainda não estava no pensamento médico e, por isso, os tratamentos eram físicos e morais. A noção de cura foi estabelecida apenas no século XVIII e somente no século XIX a medicina viria a controlar a loucura e a pôr fim às perversões sobrenaturais [6].

No tempo dos Incas e outras civilizações pré-colombianas era comum a utilização de práticas de trepanação craniana para expulsar os maus espíritos, embora ainda estivessem longe do conhecimento das bases orgânicas da vida psíquica. Nas décadas de 40 e 50 do século XX, a electroconvulsoterapia e especialmente a psicocirurgia viriam a adquirir preponderância no tratamento da doença mental, fundamentalmente depois das descobertas de António Egas Moniz. No entanto, em virtude dos efeitos adversos e devido aos excessos do seu uso, o desenvolvimento da psicoterapia e principalmente da farmacologia provocaram o abandono da psicocirurgia [4].

Os progressos psicofarmacêuticos e as mudanças políticas provocaram transformações neste contexto, particularmente o início do processo de desinstitucionalização da doença mental. O tratamento passou a incluir a reabilitação social e uma concepção comunitária [1].

No discurso médico a medicação consiste numa parte fundamental do tratamento, que idealmente deve variar a sua intensidade conforme a gravidade da sintomatologia, e deve também ser auxiliada com sessões de psicoterapia. Todavia, a carência de cuidados psicoterapêuticos e a discrepância entre as necessidades dos utentes e o meio social têm marginalizado os cuidados comunitários. De acordo com o discurso médico, o aumento de situações de doença mental e o uso consequente de psicofármacos resultam da introdução dos cuidados de saúde mental nos hospitais gerais [9]. Este facto contribuiu para a diminuição do estigma e para uma maior resistência ao rótulo reportando, deste modo, o acesso aos direitos das pessoas no sentido do sick role a que Talcott Parsons faz referência [8].

Não obstante, o processo de medicalização acontece numa linha entre a oferta e a procura. Por um lado, temos uma sociedade mórbida que exige a medicalização. Por outro lado, temos uma instituição médica que certifica essa morbidade. Neste contexto, observa-se a negação de cada um em conviver com a dor, a doença e a morte [7]. A medicina actua no sentido de manter o equilíbrio normativo exercendo controlo social [10], isto é, a medicalização do desvio, intencionalmente ou não. Por exemplo, o caso da medicalização do alcoolismo [2].

Em termos técnicos o diagnóstico de uma doença mental é essencialmente clínico, ou seja, não existem análises específicas. Assenta, sobretudo, na história clínica da pessoa e da sua vivência. Desta forma, percebe-se que o diagnóstico de uma doença mental está fortemente associado ao comportamento e à interpretação clínica desse comportamento. As avaliações do comportamento colocam-nos numa fronteira entre o normal e o patológico, levando, muitas vezes, os próprios profissionais a entrarem em desacordo quanto ao diagnóstico [9].

As grandes diferenças entre um diagnóstico de uma doença mental em comparação com uma outra doença orgânica assentam no facto de as pessoas não procurarem, de imediato, ajuda médica [9]. Este facto reporta-nos aos argumentos proferidos por Parsons, já que a doença mental assume, muitas vezes, uma conduta desviante fazendo com que as pessoas não sejam desresponsabilizadas das suas responsabilidades sociais [8]. Neste sentido, as repercussões são também diferentes, isto é, a forma como uma pessoa se passa a ver a si própria e o modo como os outros a passam a ver assumem contornos diferenciados dos de outras situações de doença [9].

No discurso médico as doenças mentais têm origem biopsicossocial. Contudo, remetem sempre uma base biológica e colocam as questões psicossociais como adjuvantes, descurando deste modo a correlação existente entre o desenvolvimento orgânico e biológico com o ambiente humano e social [9]. A análise histórica demonstra, aliás, que o meio ambiente é fundamental na explicação do estado de saúde da população em geral [7]. Por exemplo, na depressão verifica-se que as mulheres estão significativamente mais representadas e uma parte expressiva afirmou ter procurado as instâncias médicas para realizarem o diagnóstico e admitiu ter tomado medicação nas duas semanas anteriores aos inquéritos [3]. Através de uma leitura sociológica verificou-se que o número elevado de diagnósticos nas mulheres resulta de circunstâncias sociais, já que as mulheres verbalizam mais o que sentem e têm uma maior predisposição para procurar ajuda médica [9].

Notas

[1] Alves, Fátima e Silva, Luísa Ferreira da (2004), “Psiquiatria e comunidade: Elementos de reflexão”, Actas do Vº Congresso Português de Sociologia – Sociedades Contemporâneas: Reflexividade e Acção, pp. 56-64.

[2] Conrad, Peter, e SCHNEIDER, Joseph W. (1980), Deviance and Medicalization: From Badness to Sickness. St. Louis, C.V. Mosby.

[3] INE – Instituto Nacional de Estatística (1995/1996; 1998/1999; 2005/2006), Inquérito Nacional de Saúde, Lisboa, INE.

[4] Ferreira, A. J. Gonçalves (2006), “Egas Moniz e a História da Psicocirurgia‖”, Revista da Faculdade de Medicina de Lisboa, Série III, Vol. 11 n.º 3, pp. 147-152.

[5] Fonseca, A. Fernandes da (1995), Saúde Mental e Humanização, Porto, Edições Afrontamento.

[6] Foucault, Michel (1991), História da Loucura, São Paulo, Perspectiva, 3ª Edição.

[7] Illich, Ivan (1976), Medical Nemesis, New York, Pantheon.

[8] Parsons, Talcott (1988), Sistema Social, Madrid, Alianza.

[9] Oliveira, Joel e Augusto, Amélia (2012), “A doença mental enquanto vulnerabilidade à exclusão social: o caso da esquizofrenia e da depressão”, in Matos, Alice Delerue e Schouten, Maria Johanna (orgs.), Saúde. Sistemas, Mediações e Comportamentos, Ribeirão, Ed. Húmus.

[10] Zola, Irving Kenneth (1977), “Healthism and Disabing Medicalization”, in ILLICH, Ivan et al. Disabling professions, London, Marion Boyars.

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