Dimensão analítica: Cultura e Artes
Título do artigo: “O que é que está mal neste conjunto?” – O exotismo e a exceção na minha relação com os media. (Parte I)
Autora: Ana Matos Fernandes
Páginas pessoais: www.capicua.pt / www.facebook.com/capicuarap
E-mail: capicuarap@gmail.com
Palavras-chave: música, media, identidade.
O meu nome é Ana, mas há quem me conheça por “Capicua” no mundo da música. Nasci no Porto (centro da cidade) em 1982. Estudei Sociologia no ISCTE e fiz um Doutoramento em Geografia Humana na Universidade Barcelona. Sou uma “branquela”, filha de pais escolarizados e neta de avós escolarizados. Infância feliz, criança normal, sem nenhum trauma de maior.
Tudo linear, até que, perto dos 30 anos me apercebo que, afinal, sou um ser exótico.
Num daqueles exercícios ao estilo “Rua Sésamo”, em que entre alguns objetos se identifica qual deles está desintegrado do conjunto: uma maçã, uma pera, uma banana e um sapato… Pelos vistos, eu sou o sapato. O mais irónico é que eu sempre me senti uma laranja. Escolhi a minha fruteira, acomodei-me entre um kiwi e um cacho de uvas, fui bem recebida por todo o “tutti frutti” e só agora me apercebo (pelos olhares externos) que há quem ache que eu não pertenço ao meu conjunto.
Passo a explicar…
Comecei a fazer Graffiti com 15 anos e descobri o Hip Hop. Passei a frequentar festas de Rap, construí o meu grupo de amigos dentro da cultura, cresci a ouvir a primeira geração de rappers do Porto e formei a minha identidade de adolescente dentro da tribo, orgulhosamente. Anos mais tarde, comecei a escrever as minhas próprias rimas, formei uma banda com alguns amigos, gravei Ep’s e Mixtapes, ensaiei muito, organizei concertos para dar concertos e cumpri todo o percurso que um rapper underground deve fazer, para espalhar o seu nome pela cena Hip Hop nacional.
O Hip Hop ensinou-me muita coisa e foi a ele que dediquei quase todo o meu tempo livre. Foi com ele que me rotulei nos anos da minha adolescência, numa rebeldia contra os rótulos que externamente se impunham. Foi com ele que criei uma relação estreita com a minha cidade e com a língua portuguesa. Foi com ele que percebi a força das palavras e o quanto é revolucionário elevar a nossa linguagem quotidiana, o nosso calão e as nossas referências locais, a matéria-prima para a criação artística.
Foi com ele que aprendi a ética da autossuperação e que estimulei o espírito de iniciativa, numa espécie de DIY militante que me anima até hoje. Foi com ele que percebi que a competitividade saudável entre pares é o melhor combustível para a permanente evolução técnica, sobretudo quando não contamos com apoios externos. E foi com ele que tomei consciência que qualquer um pode fazer música, mesmo sem tocar instrumentos, mesmo sem saber ler pautas, mesmo sem ter voz para cantar, mesmo sem grandes estúdios, mesmo sem editoras, quase sem nada. Foi o Hip Hop que me mostrou a possibilidade de (poder) fazer música e foi ele que deu sentido à minha escrita. Posso dizer que é, até hoje, o meu habitat natural, onde me sinto identitária e confortavelmente integrada e que tenho muito orgulho nisso.
Em 2012, finalmente, editei o meu primeiro LP em nome próprio, através de uma plataforma editorial chamada “Optimus Discos”, que me deu apoio na promoção e assessoria de imprensa. E foi a partir daí que a minha música atingiu um público bem mais abrangente, saindo do meio Hip Hop e entrando nos circuitos habituais de divulgação da música portuguesa.
Foi também aí que fui descoberta pelos media, que deram um ótimo destaque ao meu trabalho. Fui solicitada para largas dezenas de entrevistas, nos mais variados meios de comunicação, recebi ótimas críticas ao álbum, que acabou por figurar nos lugares cimeiros de quase todas as listas de “melhores discos do ano” de 2012. Nunca poderia ter previsto todo este burburinho e aceitação, mas confesso que foi bastante motivador e reconfortante.
Em março de 2014 chegou o segundo disco – “Sereia Louca” (editado pela Valentim de Carvalho) e o interesse mediático, não só se manteve, como aumentou, o que tem sido uma ótima ajuda na promoção do meu trabalho. Voltaram as entrevistas, as críticas favoráveis e um interesse notório em dar visibilidade, não apenas à minha música, mas também à minha pessoa, à minha “persona”, à minha história, opinião, exemplo, etc.
O que é certo, é que foi nessa relação com os media, quer pelo trato com os jornalistas e suas perguntas, quer avaliando o resultado do seu trabalho, lendo os artigos e as críticas à minha música, que me apercebi de que, boa parte do seu interesse por mim, derivava da sua curiosidade perante o meu (até então inconsciente) exotismo. Era mulher, branca, muito escolarizada, do Porto, com cerca de 30 anos e, por tudo isso, parecia-lhes estranho que fosse rapper.
Destacando-se o género como o principal pilar dessa estranheza e da consequente construção mediática da “identidade de exceção” que aparentemente me cabe, perguntam-me recorrentemente como é para mim ser mulher no Hip Hop. E depois de me familiarizar com a omnipresença da pergunta e com a necessidade de repetir a resposta (em que explico que ser mulher no Rap, além de não ser assim tão relevante musicalmente, a ser um fator diferencial, é certamente uma vantagem, por sermos poucas e termos mais visibilidade), tomei consciência que os guiões de entrevista habituais e algumas das críticas comparativas mais comuns, revelam os pequenos e grandes mitos que cismam em pairar sob o Hip Hop.
Apercebi-me que o estereótipo de “rapper”, do qual frequentemente partem para avaliar o meu trabalho e, sobretudo, a mim enquanto Mc, não só é muito estreito, como é bastante preconceituoso. Obviamente que nem todos os jornalistas com quem tive contacto, partilham destas representações e que, alguns deles, são apreciadores de Hip Hop e conhecedores da cultura, mas posso dizer que há uma tendência clara para a depreciação do género (que certamente ultrapassa a classe profissional para ser partilhada por muito mais gente, nomeadamente dentro da própria indústria musical).
(O artigo continua na parte II, também publicado na presente Série de Artigos de Opinião)
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