Dimensão analítica: Ambiente, Espaço e Território
Título do artigo: A “internalização da natureza” na costa portuguesa
Autor: José Pedro Silva
Filiação institucional: Sociólogo
E-mail: j.silva.pedro@gmail.com
Palavras-chave: costa, erosão, internalização da natureza.
As zonas costeiras são dotadas de um valor triplo. Para além do seu valor ecológico, elas possuem também, recorrendo à terminologia proposta por Schnaiberg [1], um elevado ‘valor de uso’ – ou seja, preenchem funções ambientais, recreativas e estéticas – e também um ‘valor de troca’ importante, o que significa que podem ser rentáveis de um ponto de vista monetário. A proximidade do mar e a existência de praias conferem-lhe valor paisagístico, ao mesmo tempo que potenciam várias actividades recreativas e fazem delas locais atraentes para viver permanentemente ou para ter uma casa de férias [2]. O seu valor económico também é potenciado por estas características: é nas zonas marítimas que se processa a pesca e se localizam os portos, mas, para além disso, o seu ‘valor de uso’ converte-as em locais privilegiados para o sector do turismo.
Mas elas são também áreas vulneráveis, sujeitas a processos de transformação profundos, aspectos que nem sempre são devidamente equacionados: a sua ocupação processa-se frequentemente como se elas fossem imutáveis. A migração rumo às cidades do litoral com origem no interior do país e a crescente utilização da costa enquanto local de recreação conduziu à sua urbanização, ao mesmo tempo que o planeamento se revelou pouco eficaz e pouco capaz de reconhecer a instabilidade do litoral. Ocuparam-se zonas de risco, a defesa da costa passou sobretudo, ao longo de todo o século XX, pela construção de estruturas pesadas, como esporões, que artificializam a costa e deslocam o problema da erosão do local onde a defesa é construída para outras áreas [3].
Recentemente, as zonas costeiras têm sido alvo de grande atenção por parte da comunicação social, evidenciando-se a sua vulnerabilidade a determinados riscos. No início do presente ano, foram noticiados os estragos, as perturbações e os prejuízos provocados pelas tempestades de inverno. Através dos meios de comunicação social chegaram-nos histórias e imagens de ondas de grandes dimensões, de destruição de construções localizadas perto do mar, e de estradas inundadas e com a circulação temporariamente interdita. Simultaneamente, foram publicadas notícias sobre o investimento em novas estruturas de defesa da costa e intervenções urgentes. Em Março, foi divulgado que o governo planeia demolir 835 habitações na orla costeira. Na origem desta decisão está o problema da erosão e consequente recuo da linha da costa. No mês seguinte, uma conferência no âmbito do projecto Change, coordenado por Luísa Schmidt, conseguiu também atrair atenção considerável dos media.
As tempestades não são um fenómeno novo. O projecto de investigação Klimhist, coordenado por Maria João Alcoforado, revelou que a ocorrência de estragos e perturbações na costa devido a tempestades tem uma história longa [4]. No entanto, com as alterações climáticas, espera-se que os acontecimentos climatéricos extremos se tornem mais frequentes, ao mesmo tempo que a ocupação e urbanização da costa a tornaram mais vulnerável. Por sua vez, as tempestades contribuem para acelerar a erosão, tal como outros fenómenos que decorrem das alterações climáticas, como a subida do nível do mar, o aumento da altura das ondas e mudanças de direcção destas e do vento. As actividades humanas, entre elas a urbanização e diversas actividades económicas, também contribuem para o agravamento do problema, que está ainda relacionado com as profundas transformações físicas verificadas nos rios e na costa, que diminuem a deposição de sedimentos [5].
A vulnerabilidade das povoações costeiras à erosão e às tempestades pode ser interpretada como uma consequência daquilo que Murphy designa de “internalização da natureza autónoma” [6]. Dissociando-se das teses que advogam a abolição da natureza ou a sua redução a uma realidade socialmente construída, este autor considera que a transformação e manipulação da natureza pelo homem conduz antes à sua internalização por parte das sociedades. As construções humanas e a tecnologia consistem em combinações novas de elementos naturais previamente existentes. A manipulação social da natureza e a ocupação e transformação de áreas anteriormente selvagens conduz não ao fim da natureza, mas antes à internalização social das suas dinâmicas autónomas e à emergência de novas dinâmicas, resultando na reconfiguração das relações entre práticas sociais e dinâmicas naturais.
A erosão está relacionada com fenómenos de reconfiguração da natureza como a urbanização e artificialização da costa e dos rios. Está também relacionada com as alterações climáticas, que não são independentes da manipulação social da natureza. Os custos e riscos da erosão não se dissociam da ocupação da costa. Isto reforça o argumento de Murphy: a natureza foi internalizada pela sociedade, através da colonização de zonas previamente selvagens e da reconfiguração dos seus elementos fundamentais. Este processo, por sua vez, não está isento de problemas. Embora tenha um lado positivo, presente no esforço de protecção da natureza e na descoberta de aspectos desconhecidos do mundo biofísico, ela também traz para o coração das sociedades riscos novos e imprevisíveis, colocando desafios que não podem ser ignorados.
Notas:
[1] Schnaiberg, Allan (2005), The Economy and The Environment, in Neil Smelser e Richard Swedberg (eds) The Handbook of Economic Sociology, Princeton: Princeton University Press, pp. 703-726
[2] Agência Europeia do Ambiente (2006), The continuous degradiation of Europe’s coasts threatens european living standards. Disponível em URL [Consult. 27 Mar 2014]: http://www.eea.europa.eu/pt/publications/briefing_2006_3/
[3] Schmidt, Luísa; Santos, Filipe Duarte; Prista, Pedro; Saraiva, Tiago; Gomes, Carla (2012), Alterações climáticas, sociais e políticas em Portugal: processos de governança num litoral em risco, Ambiente e Sociedade, v. XV, nº 1, pp. 23-40
[4] Garcia, Ricardo, Estudo contabiliza 148 tempestades fortes em Portugal no século XIX. Publicado no Público online em 17 Mar 2014. Disponível em URL [Consult. 28 Mar 2014]: http://www.publico.pt/ciencia/noticia/estudo-contabiliza-quase-150-tempestades-fortes-em-portugal-no-seculo-xix-1628366
[5] Agência Europeia do Ambiente (2013), Balancing the future of Europe’s coasts – knowledge base for integrated management. Disponível em URL [Consult. 27 Mar 2014]: http://www.eea.europa.eu/publications/balancing-the-future-of-europes
[6] Murphy, Raymond (2002), The internalization of autonomous nature into society, Sociological Review, nº 50, pp. 313 – 333.
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