O oriente do Porto oriental

Dimensão analítica: Ambiente, Espaço e Território

Título do artigo: O oriente do Porto oriental

Autor: José Pedro Silva

Filiação institucional: Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa

E-mail: jose.silva@ics.ul.pt

Palavras-chave: Porto, Campanhã, Território.

Tal como Firmino da Costa mostrou relativamente a Alfama [1], as rígidas delimitações cartográficas dos territórios nem sempre encontram correspondência nos mapas mentais elaborados pelos indivíduos. As fronteiras que definem uma cidade ou um bairro no mapa não correspondem necessariamente aos limites que confinam essa mesma cidade, ou esse mesmo bairro, na representação que dele têm diferentes grupos de pessoas.

No Porto, este fenómeno também se manifesta. Afirmar que, para muitos portuenses, e para muitas pessoas cujo quotidiano passa por esta cidade, as linhas que a delimitam não se sobrepõem de uma forma perfeita às suas fronteiras oficiais é avançar com uma hipótese que implicará, certamente, reduzido risco. No extremo oriental da cidade e do concelho do Porto (cujos limites se sobrepõem), ao longo do vale dos rios Tinto e Torto, do lado de fora da Estrada da Circunvalação, existe um território que, nos mapas mentais de muitos indivíduos, estará já fora das suas fronteiras, talvez incluído em Gondomar. Este texto consiste numa pequena reflexão sobre esse local que está, ao mesmo tempo e em tantos aspectos, dentro e fora do Porto.

Várias razões podem ser adiantadas para tentar explicar o porquê de a zona mais oriental do Porto ser excluída dos mapas subjectivos do Porto que orientam muitos indivíduos. Como já se disse, e se nos posicionarmos no centro desta cidade, aquele território encontra-se a leste da Estrada da Circunvalação, estrada essa que, de acordo com a sabedoria convencional, circunda e delimita a cidade e o concelho do Porto. Para além disso, pelo menos para alguém que se desloque a pé e de transportes públicos, o acesso a vários locais do Porto mais oriental não é fácil, nem claro, e muito menos convidativo, sendo necessário circular por passeios e bermas da Circunvalação e passar por outras estradas pouco amigáveis um peão. O próprio relevo do terreno contribui para esconder, e dificultar um pouco, o acesso a esta zona do Porto.

Por outro lado, este território, ao contrário do resto do Porto, não corresponderá bem à ideia de cidade enquanto espaço compacto e densamente povoado e edificado, consistindo antes num vale onde vários aglomerados populacionais de pequenas dimensões – como Tirares ou Pego Negro – coexistem com áreas arborizadas, zonas agrícolas e bairros de alojamento social – como o Lagarteiro. Nesta zona é possível encontrar rebanhos de ovelhas a pastar, recintos onde se guardam animais diversos, pessoas a cuidar de hortas e pequenos campos cultivados, ruínas de estruturas como azenhas ou moinhos nas margens dos pequenos rios e sistemas de canais de irrigação, alguns deles ainda utilizados. Tudo isto, como facilmente se percebe, contrasta fortemente com o ambiente urbano que marca o Porto do lado de dentro da Circunvalação.

O Porto ocidental e o Porto oriental constituem duas realidades muito distintas dentro da mesma cidade [2]. Quando comparado com o segundo, o primeiro é um território mais penalizado, em diversos aspectos: urbanístico, social, económico, ambiental, e simbólico. Trata-se de uma oposição que assentará em factores históricos, remontando, pelo menos, ao século XIX, quando a comunidade inglesa se fixou no Oeste e a indústria se instalou no Leste, onde os operários, sobretudo migrantes vindos do mundo rural, se fixaram em alojamentos baratos e precários. De uma forma geral, as decisões políticas não têm conseguindo esbater o fosso que separa estes dois territórios, contribuindo, por vezes, para o seu agravamento. Para além disso, as zonas, como esta, de fronteira entre diferentes municípios do Grande Porto, devido à ausência de uma estratégia de coordenação e planeamento intermunicipal eficaz, tendem a tornar-se espaços particularmente vulneráveis a desajustes e contrastes territoriais. No extremo oriental do Porto, estas diferentes penalizações fazem-se sentir de forma particularmente urgente [3]: trata-se de um território marcado pela pobreza e pela exclusão social, que confina com, ou inclui, alguns dos bairros sociais mais estigmatizados da cidade. São comuns casas de traço rural que, abandonadas ou não, estão frequentemente degradadas. É também possível encontrar habitações muito precárias, “barracos”. Em muitos terrenos que foram, certamente, campos agrícolas, abundam lixos e detritos sólidos. O vale é cruzado por vias-rápidas e viadutos que segmentam e descaracterizam a paisagem. O rio Tinto encontra-se muito poluído, e o seu estado de degradação também terá contribuído, no passado, para o abandono da actividade agrícola em vários locais do vale [4]. As suas margens, tal como as do Torto, apresentam vários pontos que funcionam como lixeiras, onde se vai acumulando todo o tipo de objectos indesejados.

Pelas suas especificidades – persistência de marcas rurais vincadas, elevado valor em termos de biodiversidade e de paisagem, e por proporcionar “espaço livre” num dos territórios mais urbanizados do país – o extremo oriental do Porto pode, e deve, ter um papel fundamental para melhorar a qualidade de vida dos portuenses. Para isso deverá, no entanto, ser definitivamente incluído – em todos os sentidos – no Porto. O recente Parque Oriental poderá ser um contributo nesse sentido, mesmo que se possa questionar se o modelo de parque pelo qual se optou (predomínio de espaços relvados) será aquele que melhor aproveita e se compatibiliza com as especificidades descritas. De qualquer forma, ainda há muito a fazer neste território.

Notas

[1] Costa, António Firmino da (1999): Sociedade de bairro: dinâmicas sociais da identidade. Oeiras. Celta Editora.

[2] Fernandes, José Rio (2005): “A cidade, o município e as políticas: o caso do Grande Porto”. Sociologia, nº13, pp. 227-251.

[3] Luz, Carla Sofia: “Falta tudo na zona onde sobram ilhas e há casas sem água”. Publicado no Jornal de Notícias de 2009-11-06.

[4] Pacheco, Helder (coord.) (1999): O vale de Campanhã na memória da gente. Porto. Fundação de Desenvolvimento para o vale de Campanha.

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