A desilusão democrática como solução para uma melhor democracia

Dimensão analítica: Cidadania, Desigualdades e Participação Social

Título do artigo: A desilusão democrática como solução para uma melhor democracia

Autora: Sara Otto Coelho

Filiação institucional: Licenciada em Jornalismo e Ciências da Comunicação pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Mestranda em Relações Internacionais, no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas

E-mail: sara.otto.coelho@gmail.com

Palavras-chave: Democracia, Cidadania, Manifestações, Crise.

“Democracy is the worst form of government, except for all those other forms that have been tried from time to time

(Discurso de Winston Churchill na Câmara dos Comuns, a 11 de Novembro de 1947).

São as piores crises que nos levam, muitas vezes, a um corte abrupto com um passado errante. Portugal ainda está na fase de crise, mas se há algum factor positivo a retirar do caos económico, político e social, é a certeza de que não poderemos (sobre)viver assim durante muito mais tempo.

Chegámos a uma altura em que ouvir a frase “os políticos são todos iguais” parece ser a definição mais utilizada pelos portugueses para descrever as mais altas figuras da Nação. No último ano e meio, as manifestações de maior sucesso – 12 de Março de 2011 e 15 de Setembro de 2012 – foram aquelas que se apresentavam como apartidárias e laicas. Só nestas condições é que muitos aceitam participar.

A manifestação de 12 de Março foi organizada por quatro jovens amigos representantes da “geração à rasca”. Nesse dia saíram à rua centenas de milhares de pessoas que gritaram por melhores condições de vida. Dado o sucesso da mobilização, o grupo decidiu constituir o M12M – Movimento 12 de Março, “um movimento informal, não hierárquico, apartidário, laico e pacífico que defende o reforço da Democracia”. [1]

Na manifestação de 15 de Outubro de 2011 assisti, na Avenida dos Aliados, em pleno coração do Porto, ao discurso de um jovem que falava num palco montado para efeitos de assembleia popular. Chegado o momento em que decidiu apelar a que as pessoas lutassem pelos seus direitos ingressando num partido, foi vaiado.

Novamente na assembleia popular montada nos Aliados, desta vez na manifestação de 15 de Setembro deste ano, quando o ex-deputado pelo Bloco de Esquerda José Soeiro discursava, um jovem gritou, em jeito de denúncia: “ele foi deputado!”, como se de um crime se tratasse. E apesar de nos discursos seguintes se terem ouvido vários apelos ao voto à esquerda, por parte de jovens aparentemente militantes do Bloco de Esquerda, nenhum deles arriscou mencionar o partido.

Destaco, ainda, outro exemplo de descrença generalizada na classe política, ocorrido na manifestação apartidária que aconteceu em frente ao Palácio de Belém a 21 de Setembro deste ano. Quando o Conselho de Estado se reunia para debater o aumento da Taxa Social Única anunciado pelo primeiro-ministro Passos Coelho, cada conselheiro de Estado que passou em frente ao Palácio foi vaiado, independentemente de quem fosse – e a maioria mostrou-se contra a medida nos vários espaços de opinião da comunicação social.

E se o sentimento nas ruas não é suficiente para captar a dimensão da desilusão que a população demonstra nutrir pelos políticos e pela actual democracia, foi divulgada, esta semana, uma sondagem realizada pela Universidade Católica que sugere que o número de portugueses desiludidos com a democracia chega aos 87%. 73% dos inquiridos acredita mesmo que, no futuro, “o Governo fará pior ou igual.” [2]

A desilusão com a democracia é perigosa e conduz a aproveitamentos (na Grécia, o partido neonazi Aurora Dourada elegeu, pela primeira vez, 18 deputados; em Portugal, não é raro ler e ouvir comentários de jovens que, apesar de nascidos depois do 25 de Abril de 1974, enaltecem o tempo dos cofres cheios de ouro do tempo do fascismo). Mas têm ou não os portugueses razões para estarem desiludidos?

O problema é tão abrangente que se tornou motivo de discussão constante, seja no café ou ao jantar lá em casa, nos transportes públicos, no escritório ou nas redes sociais. É esta desilusão, esta consciencialização política colectiva, a sua verbalização na praça pública e a discussão permanente dos problemas, com tentativa de formulação de soluções vindas das mais variadas fontes, que pode devolver a participação activa da cidadania a esta democracia doente.

Nos 38 anos de democracia portuguesa, a abstenção tem crescido sempre. Em 1975, as eleições legislativas contaram apenas 8,5% de abstenção. Em 1980 estava quase no dobro, 15,2%. Nova década, novo aumento para o dobro: em 1991, a abstenção nas legislativas foi de 32,6%. Em 2011, e já com o país em profunda crise, atingiu-se a cifra mais alta da democracia nacional: 41,9% [3]. A abstenção galopante não pode continuar a ser justificada com o facto de os portugueses irem à praia em dias de sol ou ficarem em casa em dias de chuva. Nem a cidadania pode ser resumida a um voto num boletim de quatro em quatro anos, partindo-se para a culpabilização de quem não vai votar como o problema maior da democracia actual.

Os problemas da democracia portuguesa passam pelas campanhas eleitorais muitas vezes dominadas por um vazio ideológico, ou por promessas eleitorais que depois são esquecidas sem que haja qualquer consequência. As pessoas deixaram de ir votar porque vêem que a meritocracia foi substituída por carreirismos em juventudes partidárias e compadrios partidários. E o corporativismo partidário não permite que os políticos possam dizer aquilo que realmente pensam, nem assumir erros passados de membros do partido sob pena de não poderem progredir dentro do aparelho.

Há um desgaste da imagem da classe política – acentuada, por exemplo, com a manutenção de ministros de várias cores envolvidos em escândalos diversos, sendo o mais recente exemplo o de Miguel Relvas – que contribui para que muitos cidadãos deixem de ir votar. Isso e constrangimentos como a obrigação de votar em listas elaboradas pelos próprios partidos, impossibilitando os cidadãos de compreender correctamente quem os representa afinal.

Os problemas da nossa democracia estão também intimamente ligados à inércia da justiça, que não mostra à sociedade que quem prevarica é julgado, independentemente do seu estatuto social ou político. Nem haverá democracia real enquanto se continuarem a tentar seguir políticas que aumentem a desigualdade económica num país que já é dos mais desiguais da OCDE, de acordo com o Coeficiente de Gini.

Por fim, não há democracia se não se trabalhar na construção de uma sociedade mais informada. Como jornalista, não posso deixar de lembrar a importância do jornalismo – “o quarto poder” – na saúde de uma democracia. E quando o jornalismo atravessa uma grave crise económica mundial, da qual resultam ameaças relacionadas com a maior permeabilidade a pressões económicas, cortes importantes de pessoal (incentivo ao trabalho imediato e de secretária, em contraponto com o trabalho sério de investigação imprescindível ao bom escrutínio democrático), precariedade crescente (à qual não é alheio o número excessivo de cursos de jornalismo que todos os anos lançam mais licenciados para um mercado saturado, e que enfraquece a profissão), a sua função de “watchdog” perde-se. E a democracia perde também.

“A democracia é o pior de todos os sistemas, com excepção de todos os outros”, dizia em 1947 Winston Churchill. Só resolvendo estas e outras lacunas estaremos em condições de construir uma democracia mais participativa e, consequentemente, uma sociedade mais justa. Ao permanecermos inertes corremos o risco de desacreditar o sistema político – ainda assim – mais justo que a História já viu. Felizmente, o último ano e meio mostrou que o agravamento das crises política, económica e social não tem gerado inércia. É um bom prenúncio.

Notas

[1] Disponível em URL [Consult. 30 Set 2012]:  http://geracaoenrascada.wordpress.com/

[2] “Sondagem: 87% estão desiludidos com a democracia”, Disponível em URL [Consult. 1 Out 2012]:http://10.38.1.194/admin/editaNoticiaHTM.asp?idNot=1563811&id=10 http://www.publico.pt/Pol%C3%ADtica/sondagem-diz-que-87-dos-portugueses-estao-desiludidos-com-a-democracia-1563811.

[3] PORDATA, citando fontes da DGAI/MAI – Base de Dados do Recenseamento Eleitoral (eleitores) e dados do escrutínio provisório (votantes), Disponível em URL [Consult. 1 Out 2012]:http://www.pordata.pt/Portugal/Taxa+de+abstencao+nas+eleicoes+para+a+Assembleia+da+Republica+total++residentes+em+Portugal+e+residentes+no+estrangeiro-2208.

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Uma Resposta a A desilusão democrática como solução para uma melhor democracia

  1. Arnaldo Gouveia diz:

    Julgo que sim que está tudo muito bem à excepção de uma referência que seja ao papel nefasto dos jornalistas (alguns deles obviamente) na sociedade que temos – é uma histeria completa. Massacram. Contam novelas. Grande parte está deveras feita com o poder, no fundo, são o mesmo polvo. E Portugal é um país tão bonito e com tão boa gente. Pena é que nunca nos tivéssemos livrado do fascismo. As coisas e as pessoas mudam de nome (ou não) e continua tudo na mesma ou pior. As pessoas não são burras.

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