Dimensão analítica: Cidadania, Desigualdades e Participação Social
Título do artigo: A crise de solidariedade-democracia na UE e o risco do diretório (Parte I)
Autor: José Pedro Teixeira Fernandes
Filiação institucional: professor-coordenador do ISCET
E-mail: jfernandes@iscet.pt
Palavras-chave: União Europeia, Solidariedade, Portugal
O Tratado de Nice, negociado em 2000 no âmbito da presidência francesa da UE, foi um primeiro passo no esforço dos grandes Estados para restabelecer a ordem «natural» da hierarquia de poder. Apesar de tudo, foi visto como um esforço insatisfatório nesse caminho. Embora a diferenciação se tenha começado a efetuar, nomeadamente pelo novo número de votos atribuídos cada Estado no Conselho, isso foi considerado insuficiente – na ótica dos grandes Estados, o sistema continuava demasiado paritário. (Por disposição transitória do Tratado de Lisboa, vai prolongar-se até 2014).
Sistema de votação por maioria qualificada instituído do Tratado de Nice
(está em funcionamento desde 1 de Maio de 2004)
Estados-membros (UE 27) | Nº votos |
Alemanha, França, Itália e Reino Unido | 29 |
Espanha e Polónia | 27 |
Roménia | 14 |
Holanda | 13 |
Bélgica, Grécia, Hungria, República Checa e Portugal | 12 |
Áustria, Suécia e Bulgária | 10 |
Dinamarca, Eslováquia, Finlândia, Irlanda e Lituânia | 7 |
Chipre, Eslovénia, Estónia, Letónia e Luxemburgo | 4 |
Malta | 3 |
Total | 345 |
A aprovação por maioria qualificada quando:i) uma maioria dos Estados-membros votar a favor (em certos casos uma maioria de dois terços);
ii) existe um mínimo de 255 votos a favor da proposta (± 73,9%) OBS: qualquer Estado-membro pode solicitar a confirmação de que os votos a favor representam pelo menos 62% da população da UE. Se este não for o caso, as decisões não serão adoptadas. |
Uma das ironias da história é que coube a um pequeno Estado – Portugal – o «privilégio» de celebrar com entusiasmo, através do Tratado de Lisboa, a futura hierarquia (e reforço da primazia) das grandes potências na UE, estabelecida sob o aparentemente irrepreensível critério da população. Assim, o futuro sistema de votação prescinde dos votos até agora atribuídos a cada Estado, passando a converter diretamente a população de cada país em peso político para a votação por maioria qualificada. Nada de mais democrático em termos de decisão, poderá pensar-se.
Sistema de votação previsto pelo Tratado de Lisboa
(é essencialmente o mesmo do Tratado Constitucional Europeu)
A) Aprovação por maioria qualificada |
55% dos membros do Conselho, incluindo, pelo menos, 15 dos Estados-membros + 65% da população da UE |
B) Minoria de bloqueio |
Pelo menos 4 Estados-membros + 35% da população da UE |
Todavia, há aqui uma flagrante coincidência entre o princípio democrático da população e a lógica de poder da realpolitik. Quando olhamos para o topo deste ranking demográfico (onde Portugal ocupa o 10º lugar, praticamente em paridade com a Bélgica, a República Checa e a Hungria), verifica-mos que este reflete, de forma quase perfeita, aquele que é o usual entendimento da hierarquia de poderes na UE: 1º Alemanha, 2º França, 3º Reino Unido, 4º Itália (depois a Espanha em 5º e a Polónia em 6º). Aumentou a democraticidade na decisão ou aumentou a expressão da política de poder na construção europeia?
A população dos Estados-membros da UE
Estado-membro | População (milhões de hab.) | % da população da UE (27) |
Alemanha | 82,438 | 16,73% |
França | 62,886 | 12,76% |
Reino Unido | 60,422 | 12,26% |
Itália | 58,752 | 11,92% |
Espanha | 43,758 | 8,88% |
Polónia | 38,157 | 7,74% |
Roménia | 21,61 | 4,38% |
Holanda | 16,334 | 3,31% |
Grécia | 11,125 | 2,26% |
Portugal | 10,57 | 2,14% |
Bélgica | 10,511 | 2,13% |
República Checa | 10,251 | 2,08% |
Hungria | 10,077 | 2,04% |
Suécia | 9,048 | 1,84% |
Áustria | 8,266 | 1,68% |
Bulgária | 7,719 | 1,57% |
Dinamarca | 5,428 | 1,10% |
Eslováquia | 5,389 | 1,09% |
Finlândia | 5,256 | 1,07% |
Irlanda | 4,209 | 0,85% |
Lituânia | 3,403 | 0,69% |
Letónia | 2,295 | 0,47% |
Eslovénia | 2,003 | 0,41% |
Estónia | 1,344 | 0,27% |
Chipre | 0,766 | 0,16% |
Luxemburgo | 0,46 | 0,09% |
Malta | 0,404 | 0,08% |
UE (27) | 492,881 | 100,00% |
A (re)entrada da política de poder nas questões europeias não é apenas visível no processo de reforma das instituições e da decisão no Conselho. Numa outra área – a das consultas à população para ratificação dos Tratados –, é também notório que esse processo está em marcha há já algum tempo. Repare-se no contraste flagrante das soluções políticas para o «não» em França, em 2005, ao Tratado Constitucional Europeu (TCE), e o «não» na Dinamarca, em 1992, ao Tratado de Maastricht, ou o mais recente não da Irlanda, em 2008, ao Tratado de Lisboa. No caso da França, o TCE foi, ainda que quase só na aparência formal, abandonado. Razão de fundo: era politicamente impossível pressionar França – um grande potência da UE –, a efetuar um exercício de cosmética democrática que seria ter de efetuar um novo referendo, no ano seguinte, sobre o mesmo assunto.
Pequenos Estados como a Dinamarca e a Irlanda, não levantam esse constrangimento democrático. Solução óbvia na lógica da realpolitik: pressionar esses Estados para que, mantendo uma aparência de atitude voluntária e de negociação paritária entre Estados soberanos (oficialmente, na União, a política de poder não existe…), repitam o referendo, de modo a que o «sim» seja, de uma forma ou de outra, obtido. Desta forma, na prática política europeia está a instituir-se o princípio de que, pelo menos para os pequenos Estados, o «sim» é o único sentido voto aceitável ao dispor de qualquer cidadão nos referendos europeus – aquilo a que ironicamente chamo a prática do «insista até que digam sim». (Naturalmente que Portugal, como «bom aluno» da União, entendeu matar o mal pela raiz, não fazendo qualquer consulta aos seus cidadãos. Face a tudo isto, diretório [1] franco-alemão que já dirige de facto a UE, é a evolução «natural» do caminho que o processo de integração europeia tem seguido. As suas raízes mais óbvias encontram-se no Tratado de Nice. Por isso, a crescente afirmação de potências diretoras na União, não é propriamente um acaso gerado pela crise económico-financeira de 2007/2008.
Notas
[1] Uma reflexão alargada sobre o risco do diretório é apresentada em Fernandes, José Pedro Teixeira (2012), A Europa em Crise, Porto: Quid Novi – ver especialmente o último capítulo do livro.
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