Dimensão analítica: Cidadania, Desigualdades e Participação Social
Título do artigo: A crise de solidariedade-democracia na UE e o risco do diretório (Parte I)
Autor: José Pedro Teixeira Fernandes
Filiação institucional: professor-coordenador do ISCET
E-mail: jfernandes@iscet.pt
Palavras-chave: União Europeia, Solidariedade, Portugal
Um dos aspectos mais originais e atrativos das Comunidades fundadas no pós-II Guerra Mundial foi a assumida renúncia à realpolitik, ou seja, à política de poder tal como esta tinha sido praticada na Europa nos últimos três séculos. De facto, esta caracterizava-se não só por uma clara hierarquização dos Estados em matéria poder – daí a conhecida terminologia de grandes e pequenas potências –, como por um jogo diplomático-estratégico onde o conflito e a guerra estavam sempre latentes. A conhecida frase do general prussiano, Clausewitz, de que «a guerra é a continuação da política externa por outros meios», é, provavelmente, a que melhor capta esta forma de relacionamento belicosa entre os europeus.
Ligada a esta renúncia à política de poder, as Comunidades implementaram uma forma de funcionamento original (usualmente designada por método comunitário). Entre outras características, este baseou-se numa relação muito mais paritária entre os Estados do que a tradicional hierarquia entre grandes e pequenas potências considerava ser o relacionamento natural entre os Estados, e na criação de órgãos supranacionais, os quais, por definição, zelariam pelos interesses comuns do conjunto europeu e não pelos interesses nacionais particulares, o mesmo é dizer dos interesses das grandes potências. Para além, disso, foram criados mecanismos de ajuda financeira aos países e regiões mais pobres, ou com algum tipo de problema estrutural de desenvolvimento ou afectados por crises sectoriais graves.
Toda esta forma de funcionar – a qual é o grande cimento histórico da União Europeia – e que deixava transparecer uma forma de funcionamento solidária, fosse ela genuína ou interessada, está hoje a ser posta em causa como vou mostrar em seguida [1]. No quadro institucional da União Europeia o Conselho é, por excelência, o órgão onde os diferentes interesses e pontos de vista nacionais devem ser projetados. Por esta razão, é fácil de entender que a forma como se decide no Conselho, e o peso de cada Estado na decisão, são o melhor barómetro para avaliar o seu carácter paritário ou hierarquizado. Num sistema ideal, perfeitamente paritário e solidário, entre grandes e pequenos Estados, teríamos um processo de votação onde todos teriam o mesmo peso, ou seja um Estado um voto.
Desde o Tratado de Nice que, em nome do aumento da eficácia do funcionamento da União, o processo de votação por maioria qualificada sofreu várias alterações. A deliberação por maioria qualificada implica que nem todos os Estados precisam de estar de acordo para ser adoptada uma determinada medida. Devo dizer, que, por princípio, não tenho qualquer crítica a efetuar a este processo pois o preço do consenso total (unanimidade) certamente seria elevado e muitas vezes levaria à impossibilidade real de ser tomada qualquer decisão, ou seja, ao bloqueio. O problema não é, por isso, a de que a decisão é má por ser tomada por maioria qualificada permitindo que um Estado soberano, mesmo tendo votado vencido, se veja vinculado a uma determinada decisão. Isto parece-me até algo que necessariamente terá de existir num processo ambicioso de integração europeia. A questão que me parece importante, e que realmente vale a pena discutir, é a do peso relativo de cada Estado nesse processo de decisão e do sentido da evolução do sistema de votação em termos de poder.
Sistema de votação por maioria qualificada do Tratado de Maastricht
(funcionou até 1 de Maio de 2004)
Estados-membros (UE 15) | Nº votos |
Alemanha, França, Itália e Reino Unido | 10 |
Espanha | 8 |
Bélgica, Grécia, Holanda e Portugal | 5 |
Áustria e Suécia | 4 |
Dinamarca, Irlanda e Finlândia | 3 |
Luxemburgo | 2 |
Total | 87 |
Aprovação por maioria qualificada com 62 votos (± 71, 3%) |
Tomemos como exemplo o caso português, que é o que nos interessa mais diretamente, e vejamos a evolução comparativa do peso da votação com a Alemanha, a França e o Reino Unidos (os Estados mais populosos e economicamente mais fortes da UE – na linguagem na tradicional política as grandes potências) e também com a Espanha, pela sua proximidade histórica e geográfica. Repare-se nas seguintes equações simples que traduzem, de alguma forma, o peso relativo dos Estados nesse processo de votação:
I. Tratado de Maastricht
Portugal 5 votos em 87 [peso na votação total = 0,05]
Alemanha: 10 votos [peso relativo de Portugal = 0,50]
França: 10 votos [peso relativo de Portugal = 0,50]
Reino Unido: 10 votos [peso relativo de Portugal = 0,50]
Espanha: 8 votos [peso relativo de Portugal = 0,62]
II. Tratado de Nice
Portugal: 12 votos em 345 [peso na votação total = 0,03]
Alemanha: 29 votos [peso relativo de Portugal = 0,41]
França: 29 votos [peso relativo de Portugal = 0,41]
Reino Unido: 29 votos [peso relativo de Portugal = 0,41]
Espanha: 27 votos [peso relativo de Portugal = 0,44]
III. Tratado de Lisboa
Portugal:10,5 ml/hat. em 492,8 [peso na votação total = 0,02]
Alemanha: 82,4 ml/hab. [peso relativo de Portugal = 0,12]
França: 62,8 ml/hab. [peso relativo de Portugal = 0,16]
Reino Unido: 60,4 ml/hab. [peso relativo de Portugal = 0,17]
Espanha: 43,7 ml/hab. [peso relativo de Portugal = 0,24]
A explicação oficial dada pelas autoridades europeias e pelos governos nacionais para a reforma das instituições e do processo de votação no Conselho é que este resulta dos alargamentos de 2004 e 2007, que levaram a UE de 15 a 27 Estados-membros. Naturalmente este argumento tem fundamento como, aliás, é fácil de comprovar. Todavia, há um segundo argumento que é normalmente omitido, ou, pelos menos, deliberadamente desvalorizado, como se fosse um aspecto menor. Mas não é. Esse argumento é que os grandes Estados (sobretudo Alemanha, França e Reino Unido), consideraram inaceitável a forma de funcionamento instituída em Maastricht. Esta era demasiado paritária e solidária entre «grandes» e «pequenos» Estados, não projetando, na tomada de decisão do Conselho, a hierarquia de poder que estes consideravam natural.
Notas
[1] Apresento aqui um síntese do argumento que desenvolvido em Fernandes, José Pedro Teixeira (2012), A Europa em Crise, Porto: Quid Novi.
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