Dimensão analítica: Condições e Estilos de Vida
Título do artigo: O consumo enquanto regulação e reprodução social
Autora: Emília Margarida Marques
Filiação institucional: CRIA (Centro em Rede de Investigação em Antropologia) / IUL
E-mail: emddm@iscte.pt
Palavras-chave: consumo, reprodução social, valor.
“Mas gosto muito de comprar roupa. Gosto. É uma vaidade que eu tenho. Tenho lá um armário com duas portas, a mais pequenina é do meu marido, a grande é minha. É toda minha! […] E deu‑me muita pena, em dar [roupa usada].”
Quem assim fala a respeito de uma relação forte com alguns dos seus objectos de consumo é uma jovem operária industrial, recentemente desempregada na sequência do fecho da fábrica onde trabalhara nos úlitmos 10 anos [1]. Ao primeiro olhar, contudo, nada no que ela aqui diz parece ligar-se a essa condição operária. Na verdade, quantas mulheres – quantas “consumidoras” – das mais diversas condições (em idade, instrução formal, ocupação, rendimento, classe social… ) não poderiam dizer – e dizem – coisas semelhantes? Na sua aparente inespecificidade, esta fala parece corroborar a ideia de uma muito acentuada agencialidade do consumidor: i.e., de uma grande independência das práticas individuais de consumo expressivo face a contingências ou enquadramentos estruturais, sistémicos.
Mas claro que não existe nenhuma “mulher das mais diversas condições”. Ninguém é “das mais diversas condições”. Cada uma, cada um vive e (co-)constrói a sua particular condição e nenhuma outra, elaborando-se no interior e através de um determinado tecido relacional, num determinado território social (e físico, também), sobre cujo desenho tem um controlo limitado. Não há subjectividade humana sem contexto social.
Saibamos então um pouco mais sobre esta operária em concreto. Na sua fábrica, exercia uma função qualificada (afinadora de máquinas), reservado na maior parte a operários masculinos. E para atingir esse posto, recorda, “ao início foi um pouco complicado. Foi um pouco complicado. Passei por muitas barreiras, calei-me a muita coisa, tapei os ouvidos […] nós entrámos duas, fomos duas a entrar [na mesma altura] – e ela não aguentou a pressão, não aguentou aquele ambiente”. Por este trabalho qualificado e de responsabilidade, exercido em regime de turnos, ela recebia um salário líquido equivalente a cerca de dois salários mínimos – mais o valor simbólico associado à qualificação do seu trabalho e ao facto de o ter conseguido obter e desempenhar em condições nem sempre propícias. E deve ter‑se em conta que este valor simbólico, se é em parte substanciado na diferença, assinalável, entre o salário de operadora (função habitual das mulheres na fábrica) e o salário de afinador, pesa por sua vez na avaliação que se faz do valor monetário do salário. Valor simbólico e valor material guardam, assim, relações estreitas entre si. É então com estes recursos – com os valores monetários e simbólicos que extrai do seu trabalho, e que percepciona e avalia relacionando-os um com o outro (e com muitos outros padrões de valor e representações) – que a nossa operária obtém (ou obtinha) a roupa de que tanto gosta.
De facto, e como se sabe, é sobretudo através do mercado que geralmente se faz, na contemporaneidade, o acesso aos bens de consumo – o que não significa, como é sabido também, que baste ter dinheiro para se fazerem compras. Ao sair para comprar roupa, por exemplo, leva-se o dinheiro, leva-se a auto-representação, levam-se os capitais culturais que permitem interpretar a roupa… Mas daqui não decorre, antes pelo contrário, que o facto de o acesso ao consumo se fazer através do mercado, implicando disponibilidade monetária por parte do consumidor, seja, em si, irrelevante. Precisamente porque o material e o simbólico se constroem mutuamente, a presença do mercado como mediador entre a pessoa e os seus objectos de consumo faz dele (e do trabalho assalariado) um poderoso contexto destas práticas. “Gosto de comprar roupa” e não apenas “gosto de ter roupa”, ou “gosto de usar roupa”. A compra, esse jogo de valores (materiais e simbólicos) nesse lugar significante que é o mercado, é relevante para a apropriação. Um armário cheio de roupas compradas não encerra os mesmos significados que um armário cheio de roupas obtidas, digamos, via terceiro sector.
E contudo, quem compra uma tshirt (por exemplo) retira a etiqueta do preço antes de a utilizar e, justamente, como parte da apropriação que dela faz. Como diria Miller [2], a tshirt está agora dentro do armário e fora do mercado – pois que, fabricada em série enquanto mercadoria, no quadro de instituições, processos e fluxos de produção formalizados, racionalizados, por vezes quase inabarcáveis de tão vastos e complexos, materialmente igual a lotes e lotes delas, pode agora, pela apropriação que o consumidor dela faz, adquirir um carácter único e servir à construção de uma subjectividade única. Objecto e sujeito, massificados e alienados na produção e no trabalho, de algum modo se libertariam mutuamente neste encontro que é o consumo [2][3].
Há que notar porém que, a este encontro, nem sujeito nem objecto chegam sem passado – pelo que as biografias (inelutavelmente sociais) de um e de outro enquadram e condicionam as possiblidades e contornos da apropriação que o primeiro expressivamente faz do segundo. Como sobejamente mostra o fascinante fenómeno das marcas – que, contudo, não esgota o assunto – produzir e disponibilizar bens (distribuí‑los, publicitá-los… ) é indiscernivelmente produzir significados, que se vão modificando e justapondo (e por vezes contradizendo) ao longo de todo o processo de provisão. Os objectos carreiam classificações sociais [4][5] e, evidentemente, materializam‑nas, o que constitui um processo poderoso de construção de sentido (é muito difícil significar Prada com Modalfa). Do mesmo modo, o percurso por que se acedeu ao objecto, os valores materiais e simbólicos aí envolvidos, os capitais culturais de que se dispõe para lidar com as biografias que traz (tudo isto estreitamente ligado ao lugar social de cada um) concorrem igualmente para desenhar os contornos e os conteúdos da apropriação expressiva dos objectos de consumo [6][7].
Negar a existência e a parcial autonomia de uma esfera de envolvimento subjectivo com os objectos de consumo, bem como os seus complexos usos identitários, corresponderia a contrariar a evidência disponível e a recusar uma das aquisições mais significativas no estudo deste campo de práticas. Pelo contrário, é justamente daqui que importa partir, procurando detalhar as formas como, através desse envolvimento, o consumo faz pesar dinâmicas sistémicas fundamentais, como a mercadorização ou o trabalho assalariado, directamente na construção da subjectividade individual – e exactamente por isso constitui uma tão subtil e relevante instância de regulação e reprodução social.
Notas
[1] Os fragmentos de empiria e reflexão que aqui se apresentam resultam de uma investigação em curso sobre relações entre trabalho e consumo entre (ex-)operárias numa localidade em desindustrialização na área da grande Lisboa.
[2] Miller, Daniel (1987) Material culture and mass consumption, Oxford: Blackwell
[3] Miller, Daniel (1995] Consumption as the vanguard of history: a polemic by way of an introduction, In D. Miller (Ed.) Acknowledging consumption, London: Routledge, pp. 1-57.
[4] Bourdieu, Pierre (1979) La distinction: critique sociale du jugement, Paris: Minuit.
[5] Douglas, Mary e Baron Isherwood (1979) The world of goods: towards an anthropology of consumption, Harmondsworth: Penguin.
[6] Narotzky, Susana (2006) Provisioning, In J. Carrier (Ed.) A handbook of economic anthropology, Oxford: Blackwell, pp. 78-93.
[7] Marques, Emília M (2010) 2010, Work, wage and consumption: valuing and displaying among manufacturing workers, Etnográfica 14 (3), pp. 527-547.
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